Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Polzonoff

Polzonoff

Transformando em crônica heroica o noticiário de cada dia.

Tava aqui pensando...

Ainda estou aqui tentando aprender com “Ainda Estou Aqui”

FERNANDA TORRES AINDA ESTOU AQUI OSCAR
O sorriso fácil, a leveza e a espontaneidade de Fernanda Torres conquistam mais corações para a esquerda do que qualquer documentário da Brasil Paralelo jamais será capaz de conquistar para a direita. (Foto: EFE/EPA/DAVID SWANSON)

Ouça este conteúdo

“Ainda Estou Aqui” ganhou um Oscar. Finalmente, dizem uns, celebrando o cinema nacional e a luta contra a ditadura. Não a de hoje, e sim aquela que acabou há 40 anos. Infelizmente, dizem outros, apontando o cisco do ufanismo hipócrita no olho alheio. E o cisco realmente está lá, bem grandão assim, ó. Mas e quanto à trave em nossos olhos – aquela que insistimos em ignorar?

É o que sempre digo e se às vezes não digo é porque acho que é óbvio e você já sabe: todos os produtos culturais, por mais propagandísticos que sejam (e “Ainda Estou Aqui” é inegavelmente uma peça de propaganda que celebra aquilo que chamei de “esquerda mítica”), têm algo a ensinar. Só que a gente nem sempre está disposto a aprender. Até porque o aprendizado pressupõe a autocrítica e... quer coisa mais démodé que isso?

Oscar

Vejamos, por exemplo, o Oscar em si. E a celebração do Oscar. Quem conseguiu enxergar por cima da raiva viu uma elite cultural desesperada por reconhecimento. E não é qualquer reconhecimento, não. É o reconhecimento daqueles que até outro dia eram considerados imperialistas ianques ou meros fabricantes de enlatados (ref. “Geração Coca-Cola”).

Para além do evidente complexo de vira-lata, essa busca pelo reconhecimento expõe a submissão espiritual da cultura brasileira. Uma cultura que já foi pujante e que de alguma forma se bastava, mas que agora precisa de uma estatueta para bater no peito e dizer “eu sou bom – aqui está o Oscar para provar”.

Fernanda Torres

Outra coisa que chama a atenção em “Ainda Estou Aqui” enquanto fenômeno cultural, e não filme, muito menos “obra de arte”, é que as reações à produção se tornaram muito mais importantes do que o filme em si. Sintoma óbvio de que vivemos uma igualmente óbvia guerra cultural na qual a chamada direita segue perdendo de lavada.

Nesse ponto, até pensei em escrever um texto dizendo que a direita precisa de uma Fernanda Torres e seu inegável carisma. Porque aquele sorriso fácil, aquela leveza, aquela espontaneidade dela conquistam mais corações para a esquerda do que qualquer documentário da Brasil Paralelo jamais será capaz de conquistar para a direita. Mas aí é que tá: será que a direita quer uma Fernanda Torres para chamar de sua?

Direita anti-intelectual

Não tenho resposta para essa pergunta. Para falar a verdade, não consigo nem mesmo imaginar uma Fernanda Torres sendo fomentada, quanto mais admirada, pela direita. Porque, para a direita (estou generalizando, claro), às vezes tudo parece pesado e belicoso demais. Me refiro, aqui, à direita que considera sorrir ou propor o riso uma “perca” de tempo. A direita que não cria, e não cria porque está obcecada em implodir o Sistema.

É a direita do “não vi e não gostei”. Do #OlavoTemSempreRazão. A direita anti-intelectual que só leu um livro na vida: “1984”. Uma direita pouco afeita a sutilezas, que acha que tolerância é sinônimo de permissividade absoluta, literal demais e que demanda uma lealdade inflexível e artificial a seus líderes. Enfim, uma direita que parece sacrificar seus talentos, sobretudo os artísticos, afogando-os num tonel de inveja, imediatismo, desconfiança e pessimismo.

Bilionários

Outra coisa que o fenômeno “Ainda Estou Aqui” revelou é que ainda há muito apoio à Ditadura Militar. Mas antes de falar sobre esse tema espinhoso me permita explorar a figura de Walter Salles – transformado pela esquerda em “bilionário do bem” e acusado pela direita de usar sua fortuna para fazer peças de propaganda disfarçadas de cinema.

Bom. Além de rico, ele é livre. Assim como são ricos e livres bilionários e multimilionários associados à direita e que, por algum motivo que me escapa, preferem se abster de conquistar corações e mentes por meio da arte. E aqui não me refiro à produção de peças de propaganda. Estou pensando na manutenção daquela cultura brasileira que, tradicionalmente, expressava os valores morais e espirituais do brasileiro – e que hoje definha na abundância estéril das leis de incentivo, nas promessas de fama e fortuna e no já mencionado desejo por reconhecimento externo.

Ditadura Militar

Agora, sim: o apoio à Ditadura. Diante da hipocrisia da esquerda, capaz de chorar o desaparecimento do Rubens Paiva, mas não a prisão da mulher que escreveu “Perdeu, mané!” na estátua, há quem sinta que precise dizer que a Ditadura Militar foi uma maravilha. Não foi, gente. Por melhor que tenha sido a sua infância ou adolescência naquela época. No mais, lição básica de lógica: não se defende um regime autoritário de um passado falsamente idílico para combater um regime autoritário do presente.

Além de moralmente errado, defender a Ditadura Militar é contraproducente. Porque o Oscar dado a “Ainda Estou Aqui” parece ter sido o início do ocaso dessa ideia de que a Ditadura Militar foi o nazismo à brasileira e a perseguição aos comunistas foi o nosso Holocausto. E por quê? Justamente porque a elite cultural por trás do fenômeno cinematográfico foi livre e, em liberdade, escancarou a hipocrisia de seu discurso em defesa dos direitos humanos. Vai levar um tempinho ainda, mas pode apostar: a esquerda ainda se arrependerá de ter feito essa balbúrdia toda em torno de “Ainda Estou Aqui”.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

OSZAR »