Ouça este conteúdo
“A ascensão de bilionários no Brasil é sintoma de um sistema imoral que concorda que a riqueza e luxo de poucos siga se perpetuando às custas da fome e desemprego de milhões.” (Fernanda Melchionna, deputada federal, PSol)
“Walter Salles nos presenteou com um filme poderoso, que levou mais de 5 milhões de pessoas a revisitarem um dos períodos mais sombrios do nosso passado.” (Fernanda Melchionna, deputada federal, PSol)
“Bilionários não deveriam existir!” (Sâmia Bomfim, deputada federal, PSol)
“O filme Ainda Estou Aqui levou o Oscar de Melhor Filme Internacional, consagrando o cinema brasileiro no cenário mundial! Uma vitória inesquecível para a cultura do país!” (Sâmia Bomfim, deputada federal, PSol)
Não vi Ainda Estou Aqui. Ainda. Não digo que não verei, pois, segundo disseram amigos de opinião insuspeita, trata-se, de fato, de um excelente filme. Sim, é mais um filme do quase monotemático – e quase sempre chatíssimo – cinema brasileiro e sobre o mito fundador da esquerda brasileira: a ditadura militar. Mais um filme que trata terrorismo doméstico e tentativa de implantação de outra ditadura, a do proletariado, no Brasil como ato de heroísmo. Mais um filme sobre a perseguição, desaparecimento e morte de esquerdistas da elite brasileira que estavam enfeitiçados pelo comunismo. A mesma elite que hoje financia, dirige e atua em tais filmes. OK, mas disseram que é um bom filme. Portanto, uma hora dessas, quando sair em algum streaming, verei.
A ditadura militar foi, de fato, um regime, para dizer o mínimo, controverso. Não dá para dizer que foi bom nem mesmo para quem, à época, como meus pais, só queria trabalhar e sustentar a sua família, para quem não se envolveu em “atividades subversivas”; afinal de contas, nenhum regime autoritário é bom, ainda que muitos não tenham sido diretamente prejudicados por ele. Minha mãe sempre se refere à segurança que havia à época, e meu pai se graduou em Ciências Contábeis e Direito, e conseguiu adquirir seu imóvel, sem entrada e de modo milagrosamente facilitado, durante o período. Mas isso não faz um regime de exceção ser bom. Muita gente foi perseguida, torturada e morta durante os 20 anos de vigência desse regime que foi fruto de um golpe de Estado. Romantizá-lo é um erro.
Walter Salles é o terceiro cineasta mais rico do mundo, atrás, apenas, de Steven Spielberg e George Lucas. A diferença é que a fortuna destes é fruto do cinema, enquanto a daquele vem de sua herança
Por outro lado, sabemos que, atualmente, muitos utilizam o período ditatorial não para promover a conscientização sobre seus graves problemas, mas para fazer avançar a ideologia que justificou a sua existência; ideologia que não é menos nociva. O comunismo ceifou milhões de vidas e, ainda hoje, condena países ao atraso; e termos pessoas que ainda o defendem mostra que não aprendemos nada. As verdadeiras viúvas da ditadura não são aqueles que sentem saudades de sua vigência, mas os que, por seu idealismo jamais superado, encontram à sua sombra justificativas para avançar em suas disputas pelo poder disfarçadas de igualitarismo humanista.
Voltando ao filme, a obra é uma realização de Walter Moreira Salles Júnior, célebre herdeiro de família de banqueiros, donos do Itaú; e é baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a sua mãe, Eunice Paiva, e o desaparecimento de seu pai, o engenheiro e político Rubens Beyrodt Paiva, que, por sua vez, era filho de Jaime de Almeida Paiva, grande latifundiário e político do interior paulista – um típico coroné, autoritário, que mandava e desmandava em Eldorado Paulista, cidade em que viveu, durante a adolescência, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
VEJA TAMBÉM:
Walter Salles, que também é responsável pelos filmes Central do Brasil e Diários de Motocicleta – este, sobre o jovem Che Guevara –, é, de fato, talentoso, e divide com seu irmão mais novo, o também cineasta João Moreira Salles (que fez um filme sobre o mordomo da família), não só a paixão pelo cinema, mas o fetiche progressista dos jovens de elite dos anos 1960. Sua fortuna, atualmente, é estimada, segundo a revista Forbes, em R$ 26,4 bilhões, o que faz dele o terceiro cineasta mais rico do mundo, atrás, apenas, de Steven Spielberg e George Lucas. A diferença é que a fortuna destes é fruto do cinema, enquanto a daquele vem de sua herança – não só do banco, mas também da exploração de nióbio em Minas Gerais, por meio da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), empresa fundada por seu pai em 1965 e que domina o mercado mundial do metal de transição.
Ou seja, estamos diante de um dos maiores representantes brasileiros daquele tipo de pessoa que as deputadas do PSol Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna disseram que não deveriam existir. Para Bomfim, “o capitalismo e essa concentração de renda e desigualdade são aberrações”, e Melchionna faz coro, dizendo em artigo que “a ascensão de bilionários no Brasil é sintoma de um sistema imoral que concorda que a riqueza e luxo de poucos siga se perpetuando às custas da fome e desemprego de milhões”.
Já o professor Valério Arcary, num artigo para o noticioso Brasil de Fato, disse que “os ricos não são necessários. Os bilionários não são imbatíveis. As grandes fortunas privadas são uma anomalia, um escárnio, uma monstruosidade”. O professor Arcary, vale lembrar, é carioca, filho de uma funcionária do Itamaraty, que viveu em Portugal e se graduou em universidades europeias. É, como diz, no mesmo site, em outro artigo em que, como um bom progressista de elite, tenta minimizar seus prestígios, fruto de “uma família de classe média. Bisneto de um oficial do Exército maranhense e de um agricultor italiano, neto de dois comerciantes, um catarinense e o outro mineiro, sou Montarroyos, e Arcary, mas levo comigo o nome de meu pai”. Ou seja, não é, nem longe, parte das dezenas de milhões de pobres-diabos brasileiros que não têm onde cair mortos. Mas finge ser.
A esquerda brasileira criou a categoria do “bilionário que faz o bem à sociedade”. Mas é ela que escolhe quem é digno de pertencer a essa seleta lista
O fato é que os mais efusivos festejadores do primeiro Oscar brasileiro para Ainda Estou Aqui, do bilionário Walter Salles, foram os esquerdistas, Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna inclusas, como se vê nas epígrafes. Mas, ao mesmo tempo em que comemoravam, construíam, com a maior desfaçatez, mais uma narrativa fruto de sua hipocrisia interminável: a de que Walter Salles é um bilionário que faz bom uso de sua fortuna. Luiz Carlos da Rocha, um advogado esquerdista, teve a desfaçatez de dizer, no X: “Ele é da elite, mas não é a cara da elite brasileira. Walter Salles é um dos raros casos de milionários a ir ao risco de usar seu dinheiro, sem benefício fiscal, e influência a favor do Brasil. Já pode ser colocado ao lado do Barão de Mauá, Delmiro Gouveia e outros poucos”. O post tem 22 mil curtidas.
A loucura disso tudo é que a esquerda brasileira, esquizofrênica por natureza como toda esquerda, pensa ter criado uma nova categoria sociológica a serviço de suas adequações ideológicas: o “bilionário que faz o bem à sociedade”. Mas, curiosamente, é ela que escolhe quem é digno de pertencer a essa seleta lista. Mais patético, impossível.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos