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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Tradicionalismo

O Centro Dom Bosco e a indefensável defesa da rebelião

Centro Dom Bosco tradicionalistas sspx
A saída para padres conservadores que sofrem algum tipo de retaliação, ou que preferem a missa tridentina, certamente não é abandonar a comunhão plena com o papa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Grok)

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Dias atrás, o Centro Dom Bosco realizou uma live com os padres Françoá Costa e Wander de Jesus Maia, sobre a ida de ambos à Fraternidade Sacerdotal São Pio X – não pretendo colocar aqui o link para evitar propaganda indevida. Foi quando descobri que o pessoal do CDB lê essa coluna, ou ao menos leu a coluna da terça-feira passada, que foi (mal) citada na live. Vejam o que disse o presidente do CDB, Álvaro Mendes, que comandou a transmissão na qual os dois sacerdotes eram convidados (perdoem a citação longa, mas é necessário; para quem quiser buscar e assistir à live, está no minuto 35):

“... naturalmente os bons padres serão perseguidos, e aí começam a vir uma série de críticas aos sacerdotes. Uma delas veio de uma reportagem da Gazeta do Povo, que é um jornal de direita católico-liberal, que diz o seguinte, e aí eu pediria pros padres comentarem, diz a reportagem o seguinte: ‘A liturgia nova, construída em consequência do mesmo Concílio [Vaticano II], encontra-se enferma, com vários erros que nós, na FSSPX, pensamos que não dá simplesmente para salvar, celebrando Missas novas com certa piedade e bom gosto. De fato, a Missa nova, entre outras coisas, foi feita sob a vistoria de seis protestantes, suprime o ofertório, retalha o Cânon, introduz novas orações eucarísticas, não deixa clara a essência sacrificial da Missa’.

Então, aqui estão as aspas, e aí vem o comentário deles: ‘Deixando de lado aqui qualquer comparação entre o missal pré-conciliar e o novo, essa afirmação de que não é possível ‘salvar os erros’ da liturgia atual celebrando-a de acordo com as rubricas é bastante problemática (...) Já disse aqui na coluna que considero Traditionis custodes um grande equívoco de Francisco. Eu prefiro a abordagem de Bento XVI, para quem uma expansão da missa tridentina levaria, primeiro, a termos missas mais reverentes segundo o missal novo; e, segundo, a um possível aperfeiçoamento do missal novo trazendo de volta elementos que a reforma litúrgica de 1969 suprimiu’.

O que eu achei interessante aqui, padres, é que... vejam o argumento revolucionário, né? Ele mostra a crítica, e aí a primeira frase que eles colocam após a crítica é ‘deixando de lado aqui qualquer comparação entre o missal pré-conciliar e o novo’. Então, vejam que a crítica modernista parece ser varrer pra debaixo do tapete as diferenças entre o missal de sempre e o missal novo, e então vem todo um argumento pra taxar os padres de desobedientes, de perigosos, de pessoas que estão perdendo a razão, porque como assim? Não são tão importantes essas diferenças? Os padres que estão querendo rezar a missa de sempre, então, têm algum tipo de problema.”

Lex orandi, lex credendi – e, se a Igreja não pode crer o erro, também não pode “rezar o erro”, no sentido de aprovar, com a autoridade petrina, um rito intrinsecamente errado

Desconsiderando as falsidades óbvias (eu não disse que ninguém tem problemas, nem que está perdendo a razão; antes fosse, para ser honesto, porque lhes atenuaria o erro), há uma falha séria de interpretação de texto aí. Eu não deixei de lado a discussão sobre a comparação entre missais porque quisesse esconder o assunto, ou porque considero ambos idênticos; aliás, quando Mendes me cita falando de um futuro aperfeiçoamento em que o missal antigo enriquecesse o novo, e não o contrário, está implícita minha avaliação, não? Deixei de lado a questão da comparação porque ela é irrelevante para minha crítica, que está voltada para a conclusão de que a Igreja promulgou um rito mau, herético, ímpio ou coisa equivalente – aliás, Mendes omitiu justamente esse trecho da minha coluna, o que acabou poupando os padres de dizer isso explicitamente.

Mas, para que não fique dúvida a respeito dessa avaliação, Mendes cita o livro A verdadeira obediência na Igreja, recém-traduzido pelo próprio CDB e escrito por Peter Kwasniewski – que tem coisas muito boas, mas que também tem proporcionado o estofo teológico-intelectual para a rebelião, como os autonomistas da esquerda italiana dos anos 70 deram o arcabouço teórico que justificava a “violência revolucionária”, das Brigadas Vermelhas aos black blocs. Mais uma citação da live (1h13’):

“Olha, por exemplo, o que está aqui na página 97, que é muito interessante. Ele vai falar agora sobre o clero conservador, tá? ‘Sobre o clero conservador, que tenta sobreviver com o Novus Ordo reverente, Massimo Viglione observa corretamente: no final, mais cedo ou mais tarde, esses sacerdotes também se verão diante da escolha entre a obediência ao mal ou a desobediência ao mal para permanecerem fiéis ao bem’. É muito forte. ‘O pente da revolução, tanto na sociedade quanto na Igreja, não deixa nós’.”

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Pois é, forte mesmo. “Obediência ao mal”? Que mal seria esse? A celebração da missa segundo o missal de São Paulo VI?

A esse respeito, tenho de lembrar que ao menos em duas ocasiões a Igreja se pronunciou duramente contra quem afirma que os sinais empregados pela Igreja na celebração da missa – o que inclui, evidentemente, o próprio rito previsto no missal – levam à impiedade: nos cânones da 22.ª Sessão do Concílio de Trento (especialmente os cânones 6 e 7 sobre o Sacrifício da Missa) e na bula Auctorem Fidei, do papa Pio VI (vejam a proposição condenada LXXVIII). “Ah, Marcio, mas naquela época não havia Novus Ordo”. Não mesmo, e nem precisava; é evidente que a Igreja não pode e nunca poderá aprovar um rito da missa que, em si mesmo, seja mau ou leve as pessoas a perder a fé. Lex orandi, lex credendi – e, se a Igreja não pode crer o erro (porque Cristo garantiu que isso jamais ocorreria), da mesma forma não pode “rezar o erro”, no sentido de aprovar, com a autoridade petrina, um rito intrinsecamente errado. Pode haver padres de pouca (ou nenhuma) fé que celebrem muito mal, mas esse é um problema dos padres, jamais do rito. Um rito pode até ser melhor ou pior que outro, mas em hipótese alguma um rito aprovado pela Igreja será mau, ímpio ou herético em sua essência.

Padre é outro Cristo, não herói de guerra

A live tem quase duas horas e meia, nem me interessa comentá-la toda aqui, mas ressalto alguns outros “melhores momentos”, como quando o padre Wander afirma que Pio XII “foi o último papa com fé integralmente católica, depois dele já não mais”, e diz que qualquer punição que lhe seja aplicada por seu bispo diocesano, dom José Negri (um bom bispo, aliás), será inválida – uma bola que eu já havia cantado para alguns amigos. A esse respeito, chega a ser bizarro que façam uma comparação com Santa Joana d’Arc, cujo processo inquisitorial foi o mais sui generis possível: ela foi condenada por inquisidores franceses simpáticos à (ou comprados pela) Inglaterra, em meio à Guerra dos Cem Anos, enfim, uma situação sem paralelo algum com os dias de hoje.

Um rito pode até ser melhor ou pior que outro, mas em hipótese alguma um rito aprovado pela Igreja será mau, ímpio ou herético em sua essência

Falando em guerra, é notável o abuso de metáforas militares. Não que a Igreja não as use, pois ela as usa; mas é tanta “guerra” pra cá, “trincheira” pra lá que a impressão é a de que Deus chama os vocacionados para desembarcar na Normandia, não para serem outros Cristos. E ser outro Cristo, como lembramos neste Domingo de Ramos – na missa nova e na missa tridentina, pois Filipenses 2 está em ambos os missais para esse dia –, também é aniquilar-se. A esse respeito, destaco uma outra fala, desta vez do padre Françoá (1h15’):

“As pessoas – vocês, na verdade, bons católicos em geral – chegam no padre conservador, como eu era, e dizem assim: ‘padre, o senhor poderia nos permitir cantar canto gregoriano na missa?’ (na missa nova, tá?) E o padre conservador, muito bem intencionado, fala ‘claro que pode cantar canto gregoriano!’ Aí cantam canto gregoriano, e vem a visita pastoral de algum bispo na paróquia. Daí vocês continuam sentados na poltrona, nos seus sofás, em suas casas, tomando chá ou café, enquanto o bispo vai dizer assim pro padre: ‘que negócio é esse de canto que ninguém entende na missa? Esse canto gregoriano ninguém entende, ninguém sabe cantar, não, coloca canto popular, canto normal’. Quem ficou queimado? Só o padre, você não, você ficou na poltrona, no seu sofá.

No outro dia, um grupo de mulheres piedosas, da mesma paróquia conservadora, fala: ‘padre, podemos utilizar véu?’ O padre conservador, bonzinho, diz assim: ‘claro que podem utilizar véu!’ De novo, vem o senhor bispo – qualquer senhor bispo, em qualquer paróquia das mulheres que usam véu – e, naquelas conversas privadas entre o bispo e o padre, o bispo vai dizer: ‘padre, que negócio é esse, véu nas igrejas? Isso é coisa do passado, manda essas mulheres tirarem esse véu, que coisa horrível!’ Quem ficou queimado de novo? Somente eu; vocês, mulheres que usavam véu nas igrejas conservadoras, estão tranquilas, na tranquilidade dos seus sofás, das suas casas.

Mais uma vez: chega um grupo de fiéis piedosos, bacana. E falam: ‘padre, vamos utilizar agora a mesa de comunhão e receber a comunhão de joelhos’. E o padre conservador bonzinho faz de novo. Basta ter uma outra visita pastoral, o bispo vê aquilo, briga de novo comigo. Assim foi durante 20 anos.”

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Pode acontecer? Certamente pode. Aconteceu com os dois padres? Ao menos no caso do padre Wander, é importante lembrar que dom José Negri, em sua nota oficial, afirmou ter oferecido (mais de uma vez!) ao sacerdote a possibilidade de celebrar em uma capela onde já se reza a missa tridentina, e que ele recusou – o padre não negou essa informação na live. Quanto ao padre Françoá, posso atestar a ortodoxia e o zelo litúrgico do bispo de Itumbiara (sobre Anápolis e Brasília não tenho informações), e duvido muito que ele podasse canto gregoriano ou comunhão na boca.

Os maus pastores, os que proíbem missa celebrada versus Deum, comunhão na boca e/ou de joelhos, canto gregoriano (que é inclusive recomendado pelo Concílio Vaticano II), desses Deus haverá de pedir muitas contas, como está em Jeremias 23. E nem posso imaginar o sofrimento que bons padres passam nas mãos de bispos desses (o que é um dos motivos pelos quais esses bispos serão muito cobrados na hora do juízo). Mas a resposta é mesmo largar tudo e se juntar à rebelião, a uma instituição que nem está canonicamente regularizada, que mina a autoridade da Igreja ao atacar a legitimidade e a ortodoxia de um missal? Certamente que não – ainda mais quando há alternativas em comunhão plena com a Igreja. Mas os padres que preferem aniquilar-se, sofrer a injustiça (porque de fato é uma injustiça) e rezar para que a situação melhore, enquanto seguem trabalhando para oferecer fé e liturgia sólidas ao povo, esses são chamados de “mornos” – e os padres Wander e Françoá certamente sabem que sua audiência vai se lembrar imediatamente de Apocalipse 3, da carta do anjo à Igreja de Laodiceia.

Os dois padres insistiram muito que não são sedevacantistas, e de fato a FSSPX nunca entrou nessa canoa furada – chegou inclusive a se distanciar do arcebispo Viganò quando ele passou a negar a legitimidade do papa Francisco. Mas não adianta muito rezar una cum famulo tuo Papa nostro Francisco e dizer “olha só, nós citamos o papa no Cânon”; o problema está em dizer una cum quando, na verdade, se optou pelo caminho de não abraçar essa unidade com o papa, selecionando cuidadosamente o que obedecer e o que desobedecer de acordo com a própria vontade – nada muito diferente do que os “católicos self-service” fazem com as doutrinas “inconvenientes” das quais eles não gostam.

Enfim, orgulho, muito orgulho. Rezemos por todos os envolvidos, e para que Deus restaure a unidade plena da sua Igreja, não apenas uma unidade formal, mas uma unidade de coração.

Deus não chama os vocacionados para desembarcar na Normandia, mas para serem outros Cristos. E ser outro Cristo, como lembramos neste Domingo de Ramos, também é aniquilar-se

Antoni Gaudí mais perto da glória dos altares

Vamos terminar com uma nota boa: o papa Francisco reconheceu as virtudes heroicas de Antoni Gaudí, o arquiteto catalão cuja mente genial produziu um dos lugares mais impressionantes onde já estive: a Basílica da Sagrada Família, em Barcelona. Falei um pouquinho dele em uma coluna de quase dois anos atrás, em que listei Gaudí entre três pessoas que eu gostaria de ver beatificadas logo – as outras duas são o médico Jerôme Lejeune e o papa Pio XII. Com o decreto desta semana, o arquiteto passa a ser considerado “venerável servo de Deus”; o passo seguinte será a beatificação, mas para isso será preciso que o Vaticano ateste um milagre obtido pela intercessão de Gaudí. O site da Associação Canônica Antoni Gaudí tem estampas com orações para a devoção privada em espanhol, inglês e italiano. Existem estampas em português também, mas não estão disponíveis no site; é preciso visitar a Sagrada Família para conseguir. Por isso, transcrevo aqui a oração que está lá:

Deus, Nosso Pai, que incutiste no teu servo Antoni Gaudí, arquiteto, um grande amor à tua Criação, com o seu ardente desejo de imitar os mistérios da infância e a paixão do teu Filho, com a virtude do Espírito Santo entrego-Vos um trabalho bem feito. Dignificai-Vos a glorificar o teu servo Antoni Gaudí, com a concessão para sua intercessão. Rogo-Vos e peço-Vos a sua graça. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, amém.
(Três vezes:) Jesus, Maria e José, alcançai-nos a paz e a proteção da família.

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