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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Conclave

Não faz sentido perguntar se um cardeal é “de direita” ou “de esquerda”

cardeais direita esquerda
Deus nos livre do dia em que teremos de explicar às pessoas que vestes litúrgicas vermelhas não têm nada a ver com comunismo. (Foto: Riccardo Antimiani/EFE/EPA)

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Outro dia, alguém foi à caixinha de perguntas de um influenciador que também é católico e perguntou se, “dentre os possíveis futuros papas, há posição política destes”. Em resumo, o sujeito queria saber quais cardeais eram “de direita” e quais eram “de esquerda”. Como, aliás, em tudo no Brasil de hoje. Antes de ir ao show de alguém, a pessoa quer saber em quem o cantor votou. Antes de torcer pra algum atleta brasileiro, tem de pesquisar se ele já tirou foto com este ou aquele. Se você vai à padaria, quer saber se, quando o padeiro estava amassando a massa, a mão estava fazendo arminha ou fazendo o L, como eu disse outro dia no Última Análise. Isso é uma coisa estupidamente chata – e, no caso dos cardeais, ainda está completamente longe da realidade.

Por quê? A resposta mais curta e óbvia é que o papado é um cargo de natureza espiritual, não política. Ainda que possa ter dimensões políticas, e de fato tem, o exercício do pontificado serve para liderar a Igreja a caminho daquele “reino que não é deste mundo”. A resposta mais longa é que as discordâncias que pode haver dentro da Igreja são muitíssimo mais complexas do que uma questão de “direita” ou “esquerda”, até porque essa é a clivagem mais artificial possível quando se trata da Igreja e de seus bispos e cardeais. Mesmo uma variante dessa dicotomia, entre “progressistas” e “conservadores”, também é enganosa, coisa de ocidental rico, como já disse o vaticanista John Allen Jr. anos atrás, comentando um consistório recente convocado por Francisco.

O papado é um cargo de natureza espiritual, não política. Ainda que possa ter dimensões políticas, e de fato tem, o exercício do pontificado serve para liderar a Igreja a caminho daquele “reino que não é deste mundo”

Uma divisão que, essa, sim, é real opõe ortodoxos e heterodoxos. Esses últimos são aqueles que desejariam mudar a doutrina da Igreja Católica, especialmente em temas como a teologia sacramental, a moral sexual e temas de vida e família. E eles estão representados no Colégio dos Cardeais: são os alemães (Müller e Woelki são exceções), os Cupichs e McElroys, os Grechs e Hollerichs. Deus nos livre de um papa saído desse grupo; por mais que os católicos acreditemos que Deus protege a sua Igreja e sempre irá impedir que ela ensine o erro, um papa desses causaria uma enorme confusão entre os fiéis.

Mas, dentro daqueles que podemos chamar de ortodoxos, a variedade é tanta que, quando se mudam os critérios pelos quais se separam os cardeais, os campos se rearranjam imediatamente. O cardeal entusiasta da sinodalidade também pode ser favorável à liberação da missa tridentina (a missa celebrada antes da reforma litúrgica de 1969, que introduziu a missa como a maioria de nós a conhecemos hoje). O cardeal que gostaria de uma abordagem mais pastoral com as pessoas em situações matrimoniais irregulares também pode discordar da ênfase que Francisco colocou nas questões ambientais. Um cardeal vindo de um país miserável, tendo presenciado em primeira mão as consequências de sistemas econômicos que não colocam o bem comum em primeiro lugar, pode conciliar posições morais classificadas como “conservadoras” e posturas ditas “progressistas” em temas socioeconômicos, e não há nada de contraditório ou esquizofrênico nisso – a esse respeito, é bom lembrar que a Doutrina Social da Igreja condena o socialismo e defende a livre iniciativa, mas nem de longe endossa libertarianismos ou versões “insensíveis” (na falta de palavra melhor) do liberalismo econômico.

VEJA TAMBÉM:

Cardeais diferentes darão importâncias diferentes e respostas diferentes às perguntas que afligem o mundo católico. Como resolver as controvérsias sobre liturgia? Como tratar as “periferias existenciais” tão caras ao papa Francisco? Como lidar com Estados hostis à fé? O que fazer com a sinodalidade? Priorizar a evangelização onde o catolicismo cresce ou nas regiões já descristianizadas? Como a religião pode contribuir para aliviar as mazelas socioeconômicas? Nada disso cabe nas caixinhas de “esquerda”, “direita”, “conservador” ou “progressista”, que oferecem “pacotes completos” que nenhum cardeal compra, e que nos economizam o necessário esforço de pensar.

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