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Na teoria, são obras de infraestrutura para promover a integração sul-americana. Na prática, o Brasil e seus vizinhos estão escavando caminhos para facilitar a vida da China. E não é por generosidade – é por submissão estratégica. Por trás do discurso tecnocrático da “integração regional” e da retórica otimista de um “futuro sul-americano interligado”, o que se desenha são rotas de dependência.
Obras internacionais, justificadas como fundamentais para o desenvolvimento da América do Sul, estão sendo executadas ou projetadas com um objetivo cada vez mais evidente: viabilizar a extração e exportação de matérias-primas para atender à demanda chinesa.
O mais insólito é que esses projetos bilionários são financiados pelos Estados latino-americanos com o objetivo de abrir corredores logísticos entre o Atlântico e o Pacífico.
Tudo isso soa bonito nos discursos e postagens nas redes sociais dos presidentes envolvidos. Mas quem observa com lupa enxerga outra coisa: rotas para acelerar o escoamento de matérias-primas para atender à demanda do gigante asiático. Não se trata de integração regional. É a mais pura logística colonial.
O Brasil, como sempre (por vocação ou maldição), entra com os recursos, com o território e com a natureza. A China entra com o plano
Na geopolítica da infraestrutura, a maior parte dos projetos de investimentos gira em torno de corredores bioceânicos, ferrovias, hidrovias e portos que miram a costa do Pacífico.
A justificativa oficial é fortalecer os laços comerciais intrarregionais e reduzir a dependência logística do Canal do Panamá. Mas a realidade é outra. A China, que já controla ou opera dezenas de portos na América Latina, precisa de novas rotas para garantir o fluxo estável de minérios, grãos e outras commodities.
Com os portos do Pacífico sob sua influência direta ou indireta, criar caminhos que conectem o interior do continente — onde estão os recursos — a essa saída se tornou prioridade.
O que se quer é criar uma rota alternativa ao Canal do Panamá. Pequim entende que depender exclusivamente do canal é um risco. Por isso, financia, influencia e até pressiona governos a viabilizarem alternativas logísticas para seu comércio exterior.
A nova peça no tabuleiro chinês se chama “Rota Bioceânica de Capricórnio”, que promete conectar os portos brasileiros aos portos chilenos. Trata-se de uma promessa de conexão entre um conjunto de estradas passando pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Chile que, em tese, encurtaria em dez dias as viagens atuais entre os dois países, quando comparados com o percurso marítimo por meio do Canal do Panamá.
Para quem tem alguma memória sobre os dois primeiros governos de Lula (2003-2010), o anúncio da nova obra tem gosto de comida da noite anterior. Em 2004, Lula disse as mesmas coisas. As mesmíssimas coisas desta semana ao prometer integração, desenvolvimento e encurtamento das viagens entre os portos brasileiros e os do Pacífico.
Só que, diferentemente desta vez, ele anunciou uma obra que conectaria o Brasil ao Peru. Um consórcio composto pela Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão assumiu o projeto que custou cerca de 1,8 bilhão de dólares (quase um terço pago pelo Brasil).
A obra, que se arrastou por mais de cinco anos, virou um foco de corrupção endêmica e foi alvo das investigações das operações Lava Jato do Brasil e do Peru.
A promessa era integrar mercados e facilitar o comércio bilateral. Na prática, virou um elefante branco. O tráfego é baixo, a manutenção cara e o percurso atravessa regiões com pouca infraestrutura de apoio. O custo do transporte é tão alto que, até hoje, não se viabilizou como rota competitiva. Virou um vetor de tráfico de drogas, imigração ilegal e contrabando.
Por falar na Amazônia, há outro delírio em curso por lá. O governo Lula está torrando R$ 600 milhões para o desassoreamento do rio Solimões, com o objetivo de criar uma hidrovia até o Peru, conectando o Amazonas ao Pacífico. Essa dinheirama é apenas para as primeiras fases do projeto.
A justificativa oficial é nobre. Sempre é. Supostamente para baratear o transporte fluvial, impulsionar a economia amazônica e integrar regiões isoladas. Mas, no centro do plano, está a mesma lógica da rodovia interoceânica: abrir caminho para exportar soja, minério e madeira até os portos controlados pela China no Peru.
Celebrada pela ministra Simone Tebet como uma das grandes obras de integração continental, a hidrovia do Solimões tem um problema geográfico e técnico que supera qualquer anedota.
No meio do caminho tem, literalmente, uma montanha. Na realidade uma cordilheira. A ideia de uma hidrovia entre o Brasil e o Pacífico ignora um detalhe fundamental: não existe conexão fluvial direta.
A logística, que exigiria intermodalidade complexa e transbordos, simplesmente não se sustenta tecnicamente nem economicamente. É mais uma fantasia cara, com brechas para corrupção e que não serve de nada ao Brasil.
A ironia é que, enquanto o Brasil banca a infraestrutura, quem lucra é a China. Os corredores bioceânicos, as ferrovias que ligam áreas produtoras ao Pacífico, os portos com capital chinês: tudo converge para um sistema logístico voltado à exportação de matérias-primas. E o Brasil segue na velha posição colonial: fornecedor barato de recursos brutos.
O que deveria estar em debate não é como cavar hidrovias para exportar soja e minério. A pergunta certa é: por que ainda estamos exportando soja e minério?
Qual é o plano de industrialização do Brasil? Onde está a estratégia para agregar valor aos nossos produtos? O mundo que cresce hoje é o que transforma, não o que apenas extrai e envia para longe.
Enquanto isso, seguimos sem uma política industrial consistente. O agronegócio vai bem, obrigado, mas continuamos exportando grãos ao invés de exportar óleo, ração e outros produtos com maior valor de venda. O minério que sai bruto e volta na forma de produtos manufaturados, gerando renda, emprego e tecnologia lá na China.
Desenvolver o interior do continente é uma meta legítima. Mas é preciso perguntar: desenvolvimento para quem? Uma política de infraestrutura voltada ao interesse nacional exigiria priorizar a industrialização, agregar valor à produção, estimular cadeias produtivas locais e garantir que o investimento público gerasse retorno em empregos, inovação e renda no Brasil — não só para facilitar o escoamento de soja para o outro lado do mundo.
A “integração regional”, como tem sido vendida, é um nome bonito para o velho papel periférico. Sem planejamento estratégico, o Brasil segue construindo as estradas por onde outros levarão sua riqueza, pagando muito pouco por ela. Essa submissão estratégica é uma escolha. E escolhas têm consequências.
Conteúdo editado por: Aline Rechmann