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O que leva um adolescente a desejar ser mártir ou a matar colegas de escola? Se você acha que é por “radicalização dos filhos nas redes”, então não entendeu nada da série Adolescência – e menos ainda a respeito do ser humano.
É confortável culpar o “discurso de ódio nas redes”. Atribuir à internet a gênese da barbárie adolescente é uma saída preguiçosa. Conveniente para especialistas de ocasião, jornalistas apressados e burocratas que precisam apresentar soluções agradáveis para problemas que nem sequer compreenderam. A explicação digital é higienizadora: transfere a culpa para o meio, nunca para a natureza humana.
A verdade é um pouquinho mais incômoda. Exige espelho. Exige uma antropologia. Exige olhar para dentro do homem, não apenas para a arquitetura social dos algoritmos.
Sem pai, sem mãe, sem mestres, o adolescente ergue um altar à própria miséria. Não é à toa que, em O Senhor das Moscas, o culto à Besta surge no exato momento em que a autoridade moral desaparece. A ilha, como as redes sociais, é apenas o palco da regressão simbólica. Onde não há lei, nasce o rito – e, com ele, o sacrifício. A cabeça de porco pendurada não é só um símbolo de medo. É um totem. Um deus primitivo que exige sangue. E ele o terá.
Quando a autoridade paterna é substituída por telas, e o rito familiar por influenciadores, sobra o caos. E o caos é sedutor. Sobra a Besta, e ela quer sangue
A mosca é o mal, o horror. A mosca, na linguagem bíblica, está longe de ser só um inseto – trata-se de um símbolo. É a corrupção espiritual, a presença do mal que se infiltra onde a ordem divina foi rejeitada. No Êxodo, ela vem como praga. Em Reis, dá nome ao deus pagão: Baal-Zebub, o “senhor das moscas”. Mais tarde, identificado como o próprio príncipe dos demônios. A mosca não ataca diretamente – ela contamina, infesta, apodrece o que antes era vivo. Por isso, seu voo é discreto. Sua presença indica o que é fétido. Onde há moscas, há carniça. E onde há carniça, há culto à morte. Em O Senhor das Moscas, não se trata apenas de crianças em crise – trata-se de uma liturgia involuntária ao antigo senhor do caos, que sempre retorna quando Deus é silenciado.
Por isso, surpreende-nos o ódio adolescente porque seguimos prisioneiros da crença na bondade natural do homem. Herdamos, como românticos, a imaginação idílica de Rousseau: a ideia de que é a sociedade quem corrompe o indivíduo – e não o indivíduo quem precisa da comunidade moral para não se perder no caos de si mesmo. Por isso nos chocamos quando a criança odeia, violenta, sacrifica e mata o coleguinha de escola. O problema, então, só pode ser o meio: redes sociais, videogames, YouTube. Nunca a criança. Nunca o desejo. Nunca o que de fato perturba o coração humano.
Mas a ilha de Golding, assim como o mundo virtual, não corrompe: revela. O que há nas crianças de O Senhor das Moscas já estava nelas. A ausência de mediação apenas acelera o processo. A brutalidade não é ensinada – é despertada.
René Girard explicou que o desejo humano é mimético. Desejamos o que o outro deseja – e essa disputa constante, se não for mediada por estruturas simbólicas (como o pai, a lei, o rito, as instituições), degenera em violência. A violência é contagiante. Não se mata por ódio. Mata-se por desejo. Por reconhecimento. Pelo olhar do outro. O adolescente, órfão de espelhos adultos confiáveis, órfão da comunidade moral, tenta afirmar sua existência numa sociedade que já fracassou em entendê-lo. A violência é o seu batismo. O inferno é anterior ao “discurso de ódio”, à “radicalização nas redes”.
A série Adolescência escancara esse colapso. Há uma cena em que a policial entra na escola e diz mais ou menos o seguinte: “Esse lugar fede. Dá nojo”. Em um primeiro momento, a frase parece banal, só que ela é profética. O ambiente da escola não é só decadente – ele é fétido. O colapso das instituições tem cheiro. A degradação moral exala e contamina. E não há protocolo de segurança que purifique isso. Não adianta chamar os “especialistas” para descrever como a violência nas redes funciona.
No último episódio, o foco recai sobre Jamie e sua família. Tudo desaba ali – na omissão, na permissividade, na covardia doméstica. A violência das redes sociais é apenas a liturgia final de um culto silencioso iniciado nos porões da própria família. Quando a autoridade paterna é substituída por telas, e o rito familiar por influenciadores, sobra o caos. E o caos é sedutor. Sobra a Besta, e ela quer sangue.
Exaltamos a pureza das crianças, o jovem sem pudor, o adulto sem autoridade, livre, independente, senhor de si. Depois nos espantamos com os monstros que criamos
Não faltam analistas dispostos a aplicar seus moldes sociológicos pasteurizados. “Necessidade de pertencimento”, dizem. Que descoberta genial. Como se isso explicasse o abismo do coração humano. Como se a sede de sentido pudesse ser resolvida com mais afeto e... “alerta de especialistas”. Falta coragem para admitir que vivemos em uma sociedade onde a transcendência morreu – e, no lugar do sagrado, restou o espetáculo da autodestruição, da profanação.
E há algo ainda mais cruel: muitos celebram essa destruição. Em nome da autonomia, da liberdade absoluta, da “desconstrução”, exaltamos a pureza das crianças, o jovem sem pudor, o adulto sem autoridade, livre, independente, senhor de si. Depois nos espantamos com os monstros que criamos. O crime de Jamie é a lógica da mosca levada às últimas consequências.
O culto à Besta, no fundo, é o retrato de uma sociedade cujo altar é o próprio ego. Onde não há sacrifício simbólico, resta o sacrifício real. E o bode expiatório pode ser qualquer um – inclusive os nossos próprios filhos.
O Filho do Homem morre como um adolescente sem pai, cercado por zombadores, traído pelos amigos, cuspido pelas autoridades
É preciso coragem para dizer que há um sacrifício que não exige mais vítimas. Um só. Cristo, o Cordeiro sem mancha, assume o lugar do bode expiatório para pôr fim à lógica do linchamento. Faz isso pelo silêncio. Pelo grito na cruz. Carrega sobre si o peso de toda a violência humana – e não revida. Diante da multidão, não argumenta, não acusa, não se defende. Deixa-se moer como um trapo sujo. Eis o escândalo do cristianismo: não a negação da tragédia, mas sua transfiguração.
O Filho do Homem morre como um adolescente sem pai, cercado por zombadores, traído pelos amigos, cuspido pelas autoridades. Ao fazer isso, rompe o ciclo. Não elimina o pecado do mundo com um decreto, mas com a ferida aberta da cruz. Não funda uma religião de poder, mas uma Igreja de mártires. Diante da Besta, só o Cordeiro que permanece.
Feliz Páscoa do Senhor.