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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

EUA e China

Não é a economia, estúpido!

trump tarifaço
Donald Trump segura a "tabela de tarifas" durante anúncio na Casa Branca: desde então, a China escalou a guerra comercial, mas outros países estão negociando. (Foto: Kent Nishimura/EFE/EPA)

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Nos últimos dias, as políticas tarifárias adotadas pelo governo Trump no comércio internacional têm dado o que falar. Em termos estritamente econômicos, topei com argumentos razoáveis tanto entre os que buscam justificar quanto entre os que condenam veementemente o tarifaço trumpista. De todo modo, como a economia não é minha área de expertise, não vou me aventurar nessa seara específica. Se, todavia, me arrisco a comentar sobre o tema, é apenas por entender que ele não diz respeito eminentemente à economia.  Aliás, bem ao contrário.

No início dos anos 1990, James Carville, então assessor de Bill Clinton, proferiu a célebre frase: “É a economia, estúpido!” Inicialmente concebida para se referir às supostas prioridades do eleitorado americano, a boutade consagrou a ideia de que a economia é uma questão prioritária tout court, devendo ser o parâmetro número um para analisar os fenômenos políticos. Não se sabe até que ponto Clinton, Carville e demais integrantes do governo americano da época realmente acreditavam nisso. O fato é que essa ideia da economia como panaceia informou a política internacional norte-americana do período, especialmente em relação à China. E o resultado foi simplesmente catastrófico.

Baseando-se numa visão triunfalista do capitalismo liberal, segundo a qual a China adotaria a democracia e ampliaria suas liberdades civis tão logo a sua economia começasse a operar sob a lógica capitalista, uma política bipartidária de apaziguamento em relação ao regime chinês vinha imperando nos EUA desde o governo Nixon. Como mostra o jornalista James Mann no livro The China Fantasy (2007), a crença na liberalização política por meio do livre mercado (“É a economia, estúpido!”) foi um dos mitos mais cultivados e difundidos entre líderes políticos e empresariais americanos ao longo dos anos 1990, um antolho ideológico que deixou o caminho livre para os planos chineses de usar o comércio internacional como arma de guerra.

Em vez de “abrir”, “pacificar” ou “liberalizar” a China, tudo o que o triunfalismo economicista americano fez foi transformar o gigante asiático numa potência militar, tecnológica e econômica

A partir de Bill Clinton, a política de apaziguamento atingiu níveis verdadeiramente suicidas, com a transferência massiva de tecnologia americana para a China, ao custo de bilhões de dólares anuais. Esse fluxo tecnológico possibilitou avanços cruciais para o programa militar chinês, garantindo que seus mísseis estratégicos deixassem de apresentar falhas de lançamento, o que permitiu ao regime comunista desenvolver capacidade de lançamento de satélites e de Mísseis de Reentrada Múltipla Independentemente Direcionada (MIRVs) equipados com ogivas nucleares. Clinton defendia que essa cooperação tecnológica teria um efeito transformador sobre o regime chinês, levando-o a uma necessária abertura política. “Uma China conectada será um vetor de democratização”, argumentava, chegando a ironizar que qualquer tentativa de censurar a internet, por exemplo, seria tão inútil quanto tentar pregar uma gelatina na parede.

Duas décadas depois, a realidade demonstrou o oposto: o Partido Comunista Chinês não apenas conseguiu “pregar a gelatina”, como também foi capaz de construir um sistema de vigilância digital jamais visto. Além de controlar rigidamente a internet dentro de suas fronteiras, o regime avançou para consolidar sua hegemonia tecnológica global. Com a liderança na implementação da internet 5G, a China fortaleceu sua capacidade de influência geopolítica, impulsionando estratégias militares e, sempre usando a ideia de livre mercado contra as próprias nações que a inventaram, consolidando uma abordagem agressiva e predatória no comércio internacional.

Em vez de “abrir”, “pacificar” ou “liberalizar” a China, como projetava a utopia liberal-progressista, tudo o que o triunfalismo economicista americano fez foi transformar o gigante asiático numa potência militar, tecnológica e econômica imbuída de um temerário projeto de expansão imperialista. Em 2012, com a chegada ao poder de Xi Jinping (um sucessor declarado de Mao Tse-tung), a China retomou de vez suas raízes maoístas, endurecendo a ditadura interna na medida mesmo em que, em vários fronts simultâneos, avançava predatoriamente sobre todo o planeta.

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Enquanto liberais e socialdemocratas americanos brincavam de “fim da história” e celebravam o poder supostamente irresistível do dinheiro, a China preparava sua campanha de guerra assimétrica e irrestrita. Na definição do estrategista militar suíço Jacques Baud:

“Ação do fraco contra o forte, a guerra assimétrica é um confronto entre dois sistemas políticos, sociais, culturais e organizacionais que obedecem a lógicas distintas. As estratégias assimétricas trazem uma dimensão nova à arte da guerra. Enquanto que, nos conflitos simétricos, a vitória se constrói de modo quase linear sobre os próprios sucessos táticos, nos conflitos assimétricos o sucesso estratégico se constrói sobre os sucessos táticos do adversário.”

Posto que optando pela cegueira deliberada, no fim da década de 1990, o governo e o establishment americanos já dispunham de informações suficientes sobre os planos chineses para a nova ordem mundial. Em 1999, por exemplo, dois coronéis do Exército de Libertação Popular da China já haviam publicado um manual estratégico que, apesar de publicado em livro com o título espalhafatoso de Guerra Irrestrita: o grande plano chinês para destruir a América, expunha precisamente os métodos de guerra não convencionais (assimétricos, híbridos ou de quarta geração, como às vezes são chamados) adotados pelo regime chinês com o objetivo de enfraquecer os EUA.

Pela primeira vez desde os anos 1980, a China está sendo formalmente reconhecida pelo governo dos EUA não apenas como um concorrente estratégico, mas como uma ameaça existencial

Os autores, Qiao Liang e Wang Xiangsui, argumentavam que os conflitos futuros não se limitariam a confrontos diretos entre exércitos. Em vez disso, para alcançar seus objetivos estratégicos, os países militarmente mais fracos teriam de recorrer a táticas não militares, como a guerra econômica, a guerra cibernética, a intervenção política no estrangeiro e a manipulação psicológica e da informação. O livro sugeria que a dependência americana da tecnologia, da globalização e da liberdade de informação, bem como o hiperfoco no domínio do poder econômico, poderiam ser explorados como fraquezas. Estratégias como sabotagem cibernética, guerra econômica e ataques à infraestrutura crítica, por exemplo, poderiam causar impactos devastadores sem a necessidade de um conflito armado direto.

Já em seu primeiro mandato, em 2017, Donald Trump apresentou-se como o único presidente americano a propor uma mudança radical na compreensão do relacionamento com a China e a insistir na vital necessidade de interromper a política de apaziguamento. Ele foi o primeiro presidente desde a ascensão dos comunistas ao poder em 1949 a confrontar diretamente Pequim – resistindo a décadas de práticas comerciais e tecnológicas desleais. Trump vinculou diretamente a segurança nacional dos Estados Unidos à segurança econômica como peça central da nova política em relação à China. Impôs bilhões em tarifas como parte de duras negociações destinadas a punir a China por décadas de práticas comerciais desleais e transferências ilegais de tecnologia. Em 2019, Trump já enfrentava Xi Jinping, e a economia chinesa começava a se contrair diante da pressão americana. Foi então que, em 2020, veio da China a Covid-19, e o resto – incluindo a derrota de Trump na eleição mais controversa dos EUA – é história.

Concorde-se ou não com ela, a política tarifária de Trump nesse segundo mandato deve ser compreendida nesse contexto. Embora os meios aí sejam econômicos, os fins não o são em absoluto. Pela primeira vez desde os anos 1980, a China está sendo formalmente reconhecida pelo governo dos EUA não apenas como um concorrente estratégico, mas como uma ameaça existencial e um inimigo a ser enfrentado em todos os domínios da guerra. A era de Carville e do triunfalismo liberal chegou ao fim. Não é a economia, estúpido!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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