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Entre os próximos dias 9 e 14 de fevereiro, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fará uma visita inédita ao Brasil. Embora venha a convite dos próceres do regime brasileiro – que fará tudo para esconder, antes que retratar, a realidade –, a RELE-CIDH se dispôs a “ouvir amplamente autoridades dos três poderes do Brasil e o Ministério Público, membros de organizações de direitos humanos, jornalistas, representantes de plataformas digitais, a imprensa e a academia” a fim de “compreender a diversidade de perspectivas e experiências em relação à situação do direito à liberdade de expressão” no Brasil.
Portanto, aproveitando a ocasião, eis o que contei ao relator, o Sr. Pedro Vaca Villarreal, por meio de carta enviada pelo endereço de e-mail indicado pela organização.
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Estimado senhor Pedro Vaca Villarreal, relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),
Meu nome é Flávio Gordon, sou doutor em antropologia social, escritor e jornalista de opinião. Escrevo uma coluna semanal em dois meios de comunicação brasileiros: o jornal Gazeta do Povo e a revista Oeste. Em 2017, publiquei um livro sobre a política brasileira intitulado A Corrupção da Inteligência (Ed. Record). Essa obra tornou-se um best-seller ao apresentar uma perspectiva crítica sobre a história política brasileira das últimas décadas. Com o livro e outros escritos, tornei-me uma figura pública com muitos seguidores nas redes sociais, as quais utilizo para divulgar meu trabalho e expressar minha visão sobre política e cultura.
Envio esta carta para, respeitosamente, solicitar uma reunião com Vossa Senhoria com o objetivo de expor a censura da qual fui vítima, cometida pelo Estado brasileiro em clara violação ao parágrafo 1º do Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário. Permita-me esclarecer alguns aspectos cruciais dos fatos relacionados ao meu caso, os quais são extensíveis a outros colegas jornalistas e até a políticos.
Dos fatos
Em novembro de 2022, em meio a uma disputa eleitoral polarizada e um intenso debate político, meu perfil foi sumariamente bloqueado na rede social Twitter (atualmente X). Na ocasião, não recebi nenhuma comunicação oficial além de um e-mail informando que meu perfil havia sido removido por ordem judicial, em um processo tramitando no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Nos meses seguintes, meu advogado tentou em vão obter acesso aos autos. Em uma ocasião, foi informado de que o processo sequer existia. Permaneci censurado na referida rede social, sem acesso ao devido processo legal, sem direito à defesa e sem sequer conhecer a razão da medida.
Os motivos da minha censura só foram revelados um ano e meio depois, quando minha conta já havia sido restituída de maneira tão misteriosa quanto havia sido bloqueada. Tomei conhecimento por meio de uma instituição estrangeira, o Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos EUA, que em 18/04/2024 publicou um documento intitulado “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”.
Em suas 540 páginas, o documento expõe ordens confidenciais de remoção de publicações e perfis emitidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil e seu braço eleitoral, o TSE. Meu nome consta no documento, entre as páginas 396 e 405. Segundo o relatório, foram apontadas 12 postagens minhas como subversivas, o que, aos olhos do Estado brasileiro, justificaria minha exclusão do debate público relacionado ao processo eleitoral de 2022.
Foi-me negado o direito de expressar uma opinião legítima sobre a transparência eleitoral e de criticar a condução do processo pelos servidores públicos responsáveis
Dessas 12, apenas 4 são de minha autoria, consistindo as demais apenas em retuítes de postagens de terceiros, sem adição de comentários.
Entre minhas postagens apontadas como delitivas pelo Estado brasileiro, havia uma em que me limitei a reproduzir entre aspas, sem comentar, um trecho de um editorial de 2009 do jornal New York Times, que dizia:
“Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis.”
Em outra, também reproduzi, sem comentar, as palavras da advogada americana Penny M. Venetis, que, em 2004, representou eleitores e candidatos de New Jersey em uma ação judicial contra o processo de votação inteiramente eletrônico. Também reproduzidas na época em outro artigo do New York Times, foram as seguintes as palavras da Dra. Venetis:
“É até irônico que essas máquinas, supostamente designadas para resolver os problemas causados por sistemas de votação antiquados, estejam simplesmente tornando invisíveis esses problemas.”
Esse foi o teor dos tuítes mencionados pelo Estado brasileiro como justificativa para minha censura sumária, sem direito de apresentar defesa. Em outras palavras, foi-me negado o direito de expressar uma opinião legítima sobre a transparência eleitoral e de criticar a condução do processo pelos servidores públicos responsáveis.
Se não fosse pela circunstância excepcional da divulgação das ordens sigilosas por parte de um órgão estatal estrangeiro, eu continuaria ignorando a razão de minha censura.
Considerações finais
Cabe lembrar que a censura prévia é vedada não apenas pelo Pacto de San José da Costa Rica, mas também pela Constituição brasileira, que o recepcionou.
No entanto, hoje renasce em meu país esse ogro voraz, que nós brasileiros julgávamos ter sido morto e enterrado em um passado ignominioso.
Devo dizer que fui um dos primeiros no Brasil a denunciar o surgimento dessa perversa engrenagem global, por vezes chamada de "Complexo Industrial da Censura". Felizmente, uma série de documentos recentes — a exemplo dos Twitter Files, do relatório supracitado do Congresso americano e da investigação ora em curso por parte da administração do novo presidente americano, Donald Trump, sobre a instrumentalização política da USAID — confirmam que o problema atinge várias nações, nas quais a liberdade de expressão regride perigosamente. O Brasil, em particular, transformou-se em um laboratório de testes desses mecanismos de censura e controle social.
Diante da tarefa que Vossa Senhoria tem à frente, gostaria de colocar-me à disposição da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão para prestar maiores informações não apenas sobre o meu caso particular, mas também sobre o desenrolar desse processo recente ocorrido no Brasil, que afasta o meu país dos melhores princípios e valores universais consagrados por essa CIDH.
Sem mais, e com votos de estima e admiração, despeço-me.
Flávio Gordon
Rio de Janeiro (Brasil)
5 de fevereiro de 2025
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