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No artigo da semana passada, comentei sobre a crítica ao identitarismo feita por um descendente dos índios Tsimshian, da Colúmbia Britânica, no noroeste do Canadá. E observei que, do ponto de vista da teoria neomarxista da consciência adotada pelo movimento woke – segundo a qual as ideias de uma pessoa são determinadas por sua condição racial, sexual ou de gênero –, a simples existência de representantes de minorias étnicas contrários às políticas identitárias soa como um escândalo lógico.
Pois dois livros publicados no ano passado, ambos críticos às políticas identitárias, particularmente à sua versão pseudocientífica intitulada Teoria Crítica da Raça (TCR), também despertam esse escândalo. Refiro-me às obras A Virtude da Neutralidade Racial [The Virtue of Color-Blindness], de Andre Archie, e O Fim da Política Racial: Argumentos por uma América Racialmente Neutra [The End of Race Politics: Arguments for a Color-Blind America], de Coleman Hughes. Os livros não escandalizaram a intelligentsia woke por seu conteúdo – de hábito, ignorado pelos militantes identitários –, mas pelo fato de seus autores serem negros. Archie é um professor de Filosofia Clássica da Universidade do Colorado. Hughes, um escritor, podcaster e pesquisador do Manhattan Institute for Policy Research, um importante think tank conservador.
O objeto de ambos os livros é o neorracismo que envenenou a América, apesar de se apresentar como antirracismo e adotar os mais variados nomes, tal como TCR, identitarismo, diversidade, inclusão etc. Independentemente do nome, esse neorracismo ataca a premissa de neutralidade racial (“color-blindness”, como se diz em inglês) simbolizada no célebre discurso de Martin Luther King Jr. Ao contrário do reverendo que liderou o movimento por direitos civis dos negros americanos, o neorracismo identitário afirma que a cor, e não o caráter, é o locus do mérito moral; que as diferenças nos resultados materiais entre grupos de cor são o principal mal; que essas diferenças vêm da opressão; e que, para curar essa opressão, a sociedade precisa praticar a discriminação positiva contra os opressores.
Ao contrário de Martin Luther King Jr., que liderou o movimento por direitos civis, o neorracismo identitário afirma que a cor, e não o caráter, é o locus do mérito moral
A expressão “neorracismo” usada para caracterizar esse movimento é adotada pelo próprio Hughes, enquanto Archie, fiel à sua formação de classicista, prefere chamá-lo de “barbarismo corrosivo”. Ambos os autores pretendem recuperar o paradigma universalista de Luther King, apresentando abertamente os seus livros como uma defesa da neutralidade racial – o princípio, nas palavras de Hughes, de que “devemos tratar as pessoas sem levar em conta a raça, tanto em nossa política pública quanto em nossas vidas privadas”. E ambos os autores se dizem frustrados pelo fato de seus livros terem sido mesmo necessários. Como é possível que a “nobre tradição da neutralidade racial” recue diante de charlatães racialistas vendendo “absurdos intelectuais” para “idiotas úteis?”, pergunta-se Archie. Como puderam transformar as ideias universalistas de Frederick Douglass e Martin Luther King Jr. em expressão de “supremacismo branco”?, pergunta-se Hughes.
Depois de libertos da perplexidade inicial em face do avanço da estupidez racialista woke, Hughes e Archie partem para o contra-ataque. Eles não poupam palavras duras para descrever os “sofismas”, a “absurdidade”, o “fanatismo”, o “fatalismo” e o “niilismo” inerentes à infeliz teoria segundo a qual cada americano é definido por seu rótulo racial. Os dois livros exploram as origens dessa perniciosa ideia, cerrando fogo nos principais charlatães racialistas que a popularizaram. Mas Archie e Hughes combatem, cada qual, por um caminho próprio.
Hughes realiza o seu contra-ataque por meio de bases lógicas e empíricas. Argumenta que as características definidoras do racialismo identitário são a arbitrariedade e negligência pelos fatos. Segundo ele, os ideólogos identitários estão errados por não conseguirem produzir os resultados quantitativos que dizem querer. Em relação às alegações empíricas dos neorracistas sobre as causas e curas das disparidades raciais, Hughes inspira-se no trabalho de Thomas Sowell, e lança uma saraivada de dados contra os mitos e as falácias propagadas pelos oponentes. Se discriminarmos com base na raça, como os neorracistas fazem, os resultados serão arbitrários, e políticas arbitrárias não podem ajudar ninguém. Em vez disso, Hughes argumenta, elas criarão “uma enorme quantidade de ressentimento justificado” e gerarão o “tribalismo racial” que “marcou e desfigurou sociedades humanas ao longo da história”.
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O argumento de Hughes é completo; sua lógica implacável e seu uso de dados, rigoroso. Sua força, no entanto, também constitui a sua fraqueza, uma vez que os identitários não argumentam com base em lógica e empiria, mas com base em chantagem emocional, manipulação e propaganda. E, nesse sentido, o livro de Archie consiste num antídoto mais potente e certeiro.
Diferentemente de Hughes, Archie ataca a visão de mundo racista em bases éticas. Não é coincidência que um professor de Filosofia Grega tenha chamado seu livro de A Virtude da Cegueira Racial. Os charlatães estão errados, ele argumenta, porque promovem qualidades atribuídas sobre o caráter. Eles atribuem valor moral ao corpo, não à alma. Ao fazer isso, solapam o credo e a cultura que sustentam a América e, se não confrontados adequadamente, acabarão “destruirão completamente a liberdade ordenada que definiu nosso modo de vida por quase 300 anos”.
O livro de Archie é direcionado aos conservadores. Em sua narrativa, os charlatães raciais conseguiram repelir e conter o princípio da cegueira racial principalmente porque os conservadores falharam em lutar. Os conservadores não queriam lutar quando os charlatães falsamente reivindicaram o alto moral. Os conservadores não queriam ser chamados de racistas. Os conservadores, enfim, cederam às chantagens e às manipulações dos identitários.
Os charlatães estão errados, diz Andre Archie, porque promovem qualidades atribuídas sobre o caráter. Eles atribuem valor moral ao corpo, não à alma
A grande força do argumento de Archie é que os dados não importam. Mesmo que os propagandistas do identitarismo estivessem corretos em sua afirmação de que a “discriminação positiva” traria uma utopia de igualdade material – afirmação facilmente desmentida por autores como Sowell e Hughes, entre outros –, Archie se lhes oporia mesmo assim, porque fins materiais não podem justificar meios imorais.
De qualquer forma, ambos os livros se complementam, unindo o aspecto empírico e o aspecto ético do combate intelectual e político contra o neorracismo. E, não que isso importe para pessoas normais, mas apenas para identitários, é uma feliz coincidência que ambos os autores sejam negros, o que comprova ainda mais a estupidez da teoria neomarxista da consciência.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos