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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Wokismo

O identitarismo em ato: a palestra de Eli Vieira na FJP

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Para o identitarismo, não há indivíduos, mas apenas categorias onde todos são encaixados. (Foto: Marcio Antonio Campos com Grok)

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“Até 2012, eu nunca estivera imerso numa subcultura em que minha raça fosse considerada importante. A People of Color Conference mudou isso. Na conferência, minha negritude não era vista como um fato neutro – irrelevante para as minhas qualidades mais profundas como ser humano. Em vez disso, minha negritude era considerada uma espécie de magia. A cor da minha pele era discutida como se fosse um belo enigma no centro da minha identidade, uma fatia de Deus dentro da minha alma (...) Fui ensinado que minha vitimização era especial – e isso me tornava especial.” (Coleman Hughes, The End of Race Politics: Arguments for a Colorblind America)

Há coisa de uma semana, o biólogo Eli Vieira, ex-colega de Gazeta do Povo, palestrou na Fundação João Pinheiro (FJP), instituição mineira de pesquisa e ensino em políticas públicas. Eli foi falar de seu novo livro, Mais iguais que os outros: demolindo o identitarismo e suas falácias, recém-lançado pelo selo Avis Rara da Faro Editorial. Ao final de sua apresentação da obra – que ainda não li, mas sobre a qual pretendo escrever uma resenha mais à frente –, o autor foi bombardeado por perguntas que ilustravam justamente o problema por ele apontado, o do tribalismo woke.

Os justiceiros sociais do identitarismo insistem que cada um de nós deve ser visto e julgado não como indivíduo, mas como membro inseparável de um grupo racial, sexual ou de gênero

Com efeito, alguns estudantes da instituição, ou militantes identitários posando de estudantes, trataram de reduzir Eli e seus argumentos a uma pretensa identidade grupal rival. Uns chegaram a questionar a presença mesma do palestrante em sua instituição, que, segundo eles, não deveria abrir as portas e ceder o microfone para um crítico das políticas identitárias, um suposto porta-voz das forças dominantes e opressoras em nossa sociedade. Segundo essa perspectiva, a cosmovisão liberal clássica de Eli – que defende a prevalência do indivíduo singular sobre as identidades coletivas, as liberdades individuais e a isonomia – serviria como uma espécie de ópio das minorias oprimidas, ao ocultar as profundas desigualdades étnicas, raciais, sexuais e de gênero que marcaram a nossa história. Em certo sentido, a crítica que lhe foi dirigia reproduz a acusação feita pelos marxistas uspianos (sobretudo os discípulos de Florestan Fernandes) a Gilberto Freyre, segundo a qual a visão freyreana sobre a miscigenação brasileira – a alegada “democracia racial” – mascarava o racismo nacional.

Foi assim que o palestrante, o indivíduo singular responsável pelos argumentos ali apresentados, foi reduzido por parte do público a um representante da “branquitude” e da “masculinidade” – essas foram algumas das expressões utilizadas pelos críticos. Para essa audiência, quem falava não era a pessoa Eli Vieira, dono de uma consciência individual. Em vez disso, a “raça” e o “sexo” dominantes – como no passado fora a “classe” – é que falavam por seu intermédio. A bem da verdade, não teria como ser diferente, pois os justiceiros sociais do identitarismo insistem que cada um de nós deve ser visto e julgado não como indivíduo, mas como membro inseparável de um grupo racial, sexual ou de gênero.

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Os antigos coletivistas marxistas argumentavam que cada pessoa era definida inescapavelmente por sua “classe social”, baseada na posse ou não dos meios de produção, condição inerente a uma luta de classes historicamente determinada, cujo desfecho, por necessidade “científica”, levaria ao triunfo do socialismo sobre o capitalismo, como transição para a utopia comunista da sociedade sem classes. Os novos coletivistas “progressistas” de raça e gênero, herdeiros ideológicos do marxismo (em versão frankfurtiana), não oferecem nenhum final utópico em sua versão do conflito histórico e social. Sua ideia de “equidade” pouco tem a ver com igualdade de direitos individuais perante a lei. E, sobretudo, contraria frontalmente a noção liberal de que os indivíduos devem ser protegidos contra o excesso de poder estatal. Em vez disso, ela implica a conquista do aparato repressor do Estado a fim de impor na marra, desde cima, a distribuição planejada de empregos, cargos, direitos e comendas com base nas proporções raciais, sexuais e de gênero dessas classificações como porcentuais estatísticos das populações locais, regionais e nacionais.

Ademais, devido ao legado de séculos de discriminação, opressão e exploração racial, sexual e de gênero por parte dos “homens brancos heterossexuais e cisgênero” contra todos os representantes de identidades minoritárias ao redor do mundo, os primeiros devem pagar reparações e aceitar cotas reduzidas de emprego, direitos e status como compensação por séculos de escravidão, segregação e outros tipos de opressão, sejam explícitos ou velados. Somente após tempo indefinido num futuro distante – quando os “homens brancos heterossexuais e cisgênero” tiverem expiado conscientemente os seus pecados contra o resto da humanidade, e quando os demais coletivos raciais, sexuais e de gênero forem considerados devidamente compensados e restituídos – é que os exploradores raciais, sexuais e de gênero estarão novamente aptos a receber sua cota “equitativa” de emprego, dignidade e renda.

A ideia de “equidade” dos novos coletivistas “progressistas” de raça e gênero pouco tem a ver com igualdade de direitos individuais perante a lei

Assim, a “boa sociedade” do futuro deverá ser fundada sobre identificadores tribais perpétuos, com proporcionalidades raciais e de gênero impostas e garantidas em todos os aspectos da vida. No entanto, como nunca se pode ter certeza de que as tendências opressoras não venham a ressurgir, e de que a psique dos opressores não será assaltada por racismo, misoginia, homofobia e transfobia recalcados, os justiceiros sociais do identitarismo precisam manter uma vigilância eterna para impedir o retorno dos males do passado. Assim, cada nova geração de “homens brancos heterossexuais e cisgênero” terá de ser educada e reeducada sobre o seu pecado original. Até que se entreguem àquilo que o meia-oitista Gilles Deleuze chamou de “devir-minoria”, os opressores de outrora precisam continuar vigiados e punidos.

Eis como uma arena idealmente reservada à liberdade de pensamento e expressão, bem como ao diálogo racional, aberto e intelectualmente diverso, pode se transformar num espaço de vigilância e imposição de consenso. Eis como uma instituição de ensino e pesquisa chega quase a exibir as características daquilo que Erving Goffman chamou classicamente de “instituição total”. Eis como a plateia de uma sala de palestras pode virar um panóptico ideológico.

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