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Uma das dificuldades de jornalistas na cobertura dos abusos recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) é encontrar juristas que tenham a coragem de se expor analisando francamente o que ocorre.
O problema não é a falta de profissionais que percebam os equívocos nos atos dos ministros; pelo contrário, é provável que eles sejam uma grande parcela dos juristas do país. No entanto, ainda são exceções aqueles que estão dispostos a falar publicamente sobre o tema. O silêncio tornou-se a norma entre juristas influentes, docentes e entidades de classe.
Os motivos, segundo diversos juristas consultados pela reportagem, são variados: temor de retaliação, cálculo de carreira, conveniência institucional, adesão ideológica, fadiga moral e falta de respaldo coletivo, entre outros.
"Não é incomum ouvir críticas privadas aos flagrantes excessos dos julgamentos mais recentes; porém, raras são as exposições públicas. Pode haver medo de retaliação, até mesmo no âmbito policial ou judicial. Porém, creio que a maior preocupação seja com a possibilidade de ser tomado como um direitista. Esse temor cresce entre aqueles que têm carreira acadêmica", diz Janaina Paschoal, professora livre-docente de Direito Penal na USP e vereadora de São Paulo (PP).
"Muitos advogados, juízes e promotores me procuram em privado, dão apoio, mas não falam o que pensam. O medo é de serem perseguidos ou vistos como inimigos do poder", afirma André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão.
Em muitos casos, o que ocorre remete ao conceito de "espiral do silêncio", formulado pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann (1916-2010): um ciclo em que o custo de discordar se torna alto demais, e o silêncio é reforçado à medida que mais vozes se calam. Quem discorda evita se manifestar, e quem se manifesta fica cada vez mais isolado.
O medo de retaliações é um dos fatores centrais do silenciamento. Advogados e professores relatam riscos reais de sanções, perseguições ou investigações judiciais para aqueles que fazem críticas públicas ao Judiciário. A sensação de insegurança jurídica, associada à fragilidade das prerrogativas da advocacia, tende a gerar uma cultura de autocensura.
Para Jorge Augusto Derviche Casagrande, advogado especialista em Direito Empresarial e compliance, "faltam, sem dúvida, manifestações corajosas de entidades acadêmicas, associações e da própria OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]".
"Vivemos um tempo de omissão institucional. A hombridade dos juristas parece ter sido substituída por um cálculo de sobrevivência. E, sim, entendo quem se cala. Eu também me calo muitas vezes. Tenho uma filha pequena e desejo vê-la crescer com o pai presente. Isso me obriga a pesar cada palavra e a evitar qualquer contundência que possa me transformar em alvo num sistema em que as prerrogativas da advocacia, hoje, infelizmente, são meramente formais", afirma.
Para ele, a autocensura é "mais insidiosa e prevalente" no Brasil do que a própria censura imposta pela força. "Juristas sérios e estudiosos, conscientes dos abusos que se acumulam nas instituições, veem-se compelidos ao silêncio por razões que vão do medo real à fadiga moral. E eu considero isso completamente compreensível do ponto de vista humano", diz.
Não apenas os formadores de opinião com influência, mas instituições que teriam o dever de se pronunciar, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e entidades acadêmicas do Direito, mantêm-se caladas, mesmo diante de abusos flagrantes.
A OAB federal, por exemplo, tem evitado tomar atitudes firmes mesmo quando direitos e prerrogativas de advogados são claramente desrespeitadas. Em casos recentes, como a reclamação feita pela defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro e de aliados sobre a falta de acesso às provas completas das denúncias sobre a suposta tentativa de golpe de Estado, a entidade permaneceu omissa.
"O caso da OAB é imperdoável, realmente. Nesse julgamento [envolvendo Bolsonaro] de terça e de quarta, a gente viu violações muito crassas às prerrogativas da advocacia que não tiveram, nem de longe, a devida repercussão, muito menos junto à OAB. A primeira delas foi o caso do doutor Sebastião [Coelho, advogado], que foi impedido de adentrar nas dependências do tribunal. Qualquer pessoa – um jornalista, outras pessoas que exerçam profissões que não têm absolutamente nada a ver com o mundo jurídico – pode ir até aos tribunais assistir ao julgamento. Não há nenhum impeditivo a isso. Foi uma violação crassa. E a OAB emitiu uma nota meramente protocolar, não tomou uma providência prática, nem sequer mandou uma notificação, ainda que fosse para inglês ver, uma notificação ao ministro, absolutamente nada", critica a consultora jurídica Katia Magalhães.
A OAB foi consultada sobre o assunto pela reportagem da Gazeta do Povo. Em caso de resposta, o texto será atualizado.
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Carreirismo é outro fator para o silêncio dos juristas ante abusos do STF
Para Katia, outra omissão escandalosa é a da elite acadêmica, incluindo reitores e diretores de faculdades de Direito. A presença constante de ministros do Supremo como figuras centrais em faculdades e universidades – seja ministrando aulas magnas, seja ocupando cargos simbólicos – contribui para esse efeito. Dentro desse ambiente, fazer críticas ao Judiciário se torna uma forma de comprometer a própria trajetória. O espaço acadêmico, que deveria garantir liberdade de cátedra, passa a operar sob o peso de um código tácito de conveniência.
"Eles não querem cair em listas negras da elite do meio jurídico", afirma Katia. "Primeiro, há a influência dos togados no meio acadêmico. Isso é um fator extremamente relevante. Os figurões do Judiciário ocupam cátedras em universidades. Nesta sexta-feira, por exemplo, nós tivemos até uma aula magna – mais uma –, do ministro Barroso na UERJ, defendendo todos os seus próprios abusos. E muitos advogados que têm pretensões acadêmicas ou já estão na academia notam que criticar togados e, sobretudo, togados de cúpula, pode acarretar um prejuízo sério à ascensão na carreira", acrescenta.
Alguns juristas também optam pelo silêncio como estratégia de autopreservação na carreira. Profissionais com ambições de chegar aos tribunais superiores por meio do quinto constitucional evitam desagradar os ministros que, direta ou indiretamente, participam dessas nomeações. No meio acadêmico, o receio de comprometer cátedras e convites a eventos institucionais também pesa contra qualquer crítica mais incisiva ao STF.
"Muitos advogados, até muito bem situados, que ganham alguns milhões por mês nos seus escritórios, aspiram a vagas nos tribunais. E essas vagas são conseguidas pelo quinto constitucional. Para entrarem nas listas do quinto constitucional, eles têm que ter a anuência dos tribunais e, óbvio, eles têm que ser visto com bons olhos pelo pessoal de cima. Eles sabem que, se criticarem todos esses abusos, o nome deles nunca vai constar em uma dessas listas", relata Katia Magalhães.
A tudo isso soma-se uma cultura antiga, já enraizada na advocacia: a de evitar confronto direto com juízes e tribunais. Escritórios dependem de manter boas relações com o foro e muitas vezes evitam críticas mesmo quando há consciência técnica sobre abusos. Essa mentalidade, que já existia, foi acentuada pelo novo cenário político-jurídico.
"Quem não prefere tomar um café ou ir jantar com um ministro em vez de rivalizar com ele de forma contundente a ponto de colocar-se em risco?", questiona Casagrande. "A espiral do silêncio não é só fruto do medo, muito embora ele tome um papel preponderante. Eu entendo que ela é consequência de uma engenharia institucional que desincentiva, por meio de violência, o pensamento crítico e premia a obediência silenciosa. E isso tem um preço altíssimo, não apenas para os juristas, mas para a sociedade como um todo."
Formação ideológica agrava o silêncio
A carga ideológica da formação universitária dos juristas aprofunda ainda mais o quadro de silêncio sobre os abusos do Judiciário. Críticas ao Supremo são muitas vezes vistas como indício de alinhamento com a direita no meio acadêmico. O risco de estigmatização gera um segundo tipo de censura.
"A classe jurídica brasileira, por questões complexas de formação, tem uma adesão muito frágil ao Estado de Direito liberal e uma visão segundo a qual o bolsonarismo é um mal a ser destruído a qualquer custo. Essas pessoas acabam apoiando o Alexandre. Se você pegar uma parte da classe jurídica, a parte universitária, que dá aula nas universidades, você vai ver que 90% ou mais apoiam o Alexandre de Moraes. Foram formados em um meio muito pouco liberal, mais favorável ao socialismo ou a algum tipo de social-democracia mais à esquerda. Essas pessoas acabam apoiando o Alexandre, porque veem nele uma barreira contra o bolsonarismo", explica Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.
A defesa dos ministros do STF, nesse ambiente, passa a ser encarada como um dever ideológico. A dissidência é confundida com traição.
"Os juristas formadores de opinião são, em sua maioria, mais ligados à esquerda. Nesse contexto, existe o medo de, ao apontar os excessos, ou mesmo as flagrantes nulidades, enfraquecer a esquerda ou mesmo fortalecer a direita", afirma Janaina Paschoal.
O silêncio nos ambientes de formação não decorre apenas de alinhamentos ideológicos. Em muitos casos, professores enfrentam o dilema de lidar com uma jurisprudência que já não reflete os fundamentos constitucionais que deveriam ensinar.
Docentes veem-se diante da escolha entre repetir os manuais ou reconhecer, em sala de aula, que a prática atual do Judiciário se afasta da teoria – o que, por si só, pode ser interpretado como um gesto de oposição. "Conheço colegas advogados, magistrados, promotores, conselheiros de contas e policiais que vivem essa tensão entre a consciência técnica e o risco institucional", afirma Jorge Casagrande.
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