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O ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes afirmou que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) “concordou” quando ouviu dele o alerta de que a corporação não iria adotar qualquer medida para interferir no resultado da eleição de 2022. Durante depoimento nesta segunda-feira (19), na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o general negou que a reunião sobre o assunto fosse “golpista”.
Nessa reunião, ocorrida em 7 de dezembro daquele ano, Bolsonaro teria apresentado a Freire Gomes e ao então comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, a minuta de um decreto para revisar o resultado da disputa presidencial.
Freire Gomes prestou depoimento no processo em que Bolsonaro e mais sete réus são acusados de tentativa de golpe em 2022. No interrogatório, contou que Bolsonaro não deu qualquer orientação aos comandantes sobre medidas a serem tomadas.
“Foi apresentado um documento, em que foi lido alguns ‘considerandos’ e que remetiam a possível GLO [operação de garantia da lei e da ordem], estado de defesa ou de sítio, mas muito superficial. Não estava o Batista Júnior [ex-comandante da Aeronáutica]. Apresentou apenas como informação, apenas para que soubéssemos e que estava desenvolvendo estudo. Não nos deu qualquer orientação”, afirmou.
Freire Gomes disse ainda que todos os “considerandos” – parte inicial em que um ato normativo apresenta justificativas – eram “embasados em aspectos jurídicos, embasados na Constituição”. “Não nos chamou a atenção. Como estava sendo estudado, aguardamos outra manifestação do sr. presidente”, narrou.
Segundo Freire Gomes, Bolsonaro não pediu opinião dos comandantes sobre o teor do decreto. Ainda assim, o então comandante do Exército disse ter feito o alerta, de que o presidente considerasse os “aspectos jurídicos” do decreto para não ser “implicado juridicamente”. “Se ele saísse desses aspectos jurídicos, além de não contar com nosso apoio, poderia ser implicado. Ele concordou e não falou mais nada”, relatou Freire Gomes.
Nesse momento do interrogatório, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, indagou Freire Gomes se ele fez o alerta por perceber que haveria alguma “implicação penal” do ex-presidente, de que o decreto significaria uma quebra da ordem democrática. Freire Gomes repetiu que disse a Bolsonaro que os militares não iriam aderir a uma iniciativa de revisão das eleições e que o ex-presidente “concordou”.
“O principal aspecto é que aquilo que competiria as Forças Armadas, não víamos como participar disso. Ele deveria atentar para todos os aspectos, concordou que não havia o que fazer. Não iriamos participar de assunto que extrapolasse nossa competência constitucional”, disse o general.
Durante todo o depoimento, Freire Gomes não usou a palavra “golpe” para se referir ao teor da conversa com Bolsonaro. Negou, por exemplo, quando o advogado do ex-ministro da Justiça Anderson Torres o questionou se ele havia participado de uma reunião “golpista”. “Não entendi o que você falou sobre ‘reuniões golpistas’. As reuniões que participei foram normais, com o presidente da República e demais comandantes, nada mais que isso”, disse Freire Gomes.
Freire Gomes também negou que tenha dado uma ordem de prisão a Bolsonaro, como chegou a ser divulgado na imprensa. “Não aconteceu isso de forma alguma”.
Também negou que tenha recebido de Bolsonaro qualquer orientação ou ordem referente a acampamentos em frente ao Quartel-General do Exército ou a unidades militares após o segundo turno da eleição – durante mais de dois meses, eleitores do ex-presidente foram para a frente dos quartéis pedir intervenção militar na eleição.
O general também contou que, numa segunda reunião sobre o decreto, ocorrida em 14 de dezembro de 2022, rechaçou, de forma mais clara, a possibilidade de atuação do Exército para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa reunião não contou com a presença de Bolsonaro, apenas do então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, do então comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, e do então comandante da Marinha, Almir Garnier dos Santos.
“O ministro da Defesa abriu a reunião tocando em outros assuntos. Mencionou que ia ler o documento que já havia sido estudado. Quando começou a descrever, o brigadeiro Baptista interrompeu e perguntou se o assunto se referia a posse do novo presidente. O ministro da Defesa ficou calado e o brigadeiro falou ‘não quero mais saber’ e eu disse que não tenho mais nada para conversar sobre isso”, relatou.
Segundo Freire Gomes, com isso, a reunião terminou de forma “abrupta”. “O assunto era basicamente em cima do mesmo conteúdo. Já conversamos com o presidente, já entendeu e já concordou, assunto encerrado”, narrou o general.
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Freire Gomes é repreendido por Moraes em resposta sobre Garnier
Ele titubeou quando foi questionado por Paulo Gonet sobre a suposta adesão do ex-comandante da Marinha Almir Garnier a uma medida de ruptura. Em depoimento à Polícia Federal, Freire Gomes disse que o almirante havia se colocado “à disposição” do ex-presidente, e por isso o militar foi acusado de participar da suposta trama golpista.
“O sr. afirmou que acredita que Garnier teria se colocado à disposição quando [Bolsonaro] apresentou medidas que fugiam a normalidade democrática? Confirma?”, questionou o procurador-geral da República, autor da denúncia do golpe.
“O que quis relatar foi que eu e o brigadeiro nos colocamos contrários ao assunto [...] Não me recordo da posição do ministro da Defesa, se tomou postura de ficar com o presidente. Não posso inferir o que Garnier quis dizer que estava com o presidente. A intenção do que quis dizer com isso, não me cabe”, afirmou.
Nesse momento, Freire Gomes foi repreendido por Alexandre de Moraes, que lembrou que, no depoimento à Polícia Federal, o general havia sugerido que Garnier estaria disposto a colaborar com um golpe.
“Se mentiu na polícia, tem que dizer que mentiu na polícia. Não pode agora dizer que não lembra. O sr. é general e foi comandante, está preparado para lidar com tensão. Solicito que antes de responder, pense bem. Ou falsou na polícia ou falseando aqui”, disse o ministro – antes, alertou que testemunhas têm o dever de dizer a verdade no processo, sob pena de serem responsabilizados criminalmente.
No final do depoimento, Moraes passou a fazer perguntas mais diretas a Freire Gomes, para que confirmasse, ou não, acusações feitas na denúncia.
“O sr. disse no depoimento que se recorda de ter participado de reunião, após o segundo turno da eleição, em que se apresentou hipóteses de GLO, Defesa e Sitio em relação ao processo eleitoral. E que o Exército não participaria visando reverter o resultado da eleição. Confirma?”, perguntou Moraes. “Sim”, respondeu Freire Gomes.
"Na última reunião, de 14 de dezembro de 2022, o depoente e Baptista afirmaram de forma contundente posicionamento contrário ao decreto. Confirma?”, indagou Moraes. “Sim”, confirmou o ex-comandante do Exército.
Por ao menos duas vezes no depoimento, Freire Gomes disse não ter certeza se, na primeira reunião com Bolsonaro, em 7 de dezembro de 2022, era Filipe Martins um “assessor” que teria lido a parte inicial, dos “considerandos”, da minuta de revisão do resultado eleitoral. No interrogatório da PF, o general disse que “possivelmente” era ele, mas no depoimento desta segunda disse que não se lembra, pois não conhece Filipe Martins.
“No dia 7 tivemos uma apresentação feita por um assessor que não conheço, não sei. Na ocasião do depoimento, disse que poderia ser o Filipe Martins. Consta ‘possivelmente’. Porque seria ele pelos dados que a Polícia Federal apresentou. Mas não conhecia e não conheço”, disse Freire Gomes.
Em sua delação premiada, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid envolveu Filipe Martins na confecção da minuta. Em depoimento, Cid disse que não participou da reunião entre Bolsonaro e os comandantes e só relatou à PF o que ouviu após o encontro.
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Dono de empresa que analisou urnas diz que não teve contato com Bolsonaro
Nesta segunda (19), outras testemunhas indicadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), de acusação, também prestaram depoimento. Uma delas foi o empresário Éder Lindsay Magalhães Balbino, dono da empresa que forneceu ao Instituto Voto Legal (IVL) um programa para examinar em detalhes os dados contidos nos logs das urnas eletrônicas. Ao responder aos questionamentos, Balbino afirmou não ter tido contato com Bolsonaro em nenhuma das reuniões feitas ao longo do contrato de sua empresa com o IVL.
Ao ser questionado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sobre a sua atuação na produção do relatório que foi apresentado pelo Partido Liberal (PL) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Balbino disse não ser responsável pelo documento.
Ele afirmou, no entanto, que recebeu o relatório e sugeriu uma alteração no texto. Para Balbino, em vez de afirmar que seria “impossível” relacionar cada log a um boletim de urna, ele recomendava escrever que seria “possível devido ao nome do arquivo do log gerado pela urna”, que seguia um padrão, contendo código município, números da zona e da seção da urna.
Ex-analista do MJ aponta "viés cognitivo político" e "desespero" nas eleições
O policial militar e ex-analista de dados do Ministério da Justiça Clebson Ferreira de Paula Vieira, também chamado como testemunha de acusação, disse que, nas eleições de 2022, havia um “viés cognitivo político” e “um ar de desespero” em ordens que recebeu para produzir relatórios sobre as eleições de 2022.
Na denúncia sobre a suposta tentativa de golpe, a PGR disse que houve um policiamento direcionado, por parte da Polícia Rodoviária Federal, no segundo turno da disputa presidencial, para tentar dificultar o voto de eleitores de Lula, especialmente no Nordeste.
Vieira contou que recebeu ordens da então coordenadora de Inteligência do ministério da Justiça, Marília de Alencar – que também é ré no caso, em outra ação penal – para produzir relatório sobre locais em que Lula e Bolsonaro tinham mais de 75% dos votos.
Também teria recebido ordem para analisar a votação em locais dominados pelo Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Disse que o resultado não foi conclusivo, nem “para um lado nem para o outro”, em referência a uma possível vantagem para Lula ou Bolsonaro nesses lugares.
Ele confirmou, no entanto, o policiamento direcionado por parte da PRF. “Sim, senhor. No estado da Paraíba, meu estado de origem, vi que estava tendo blitz numa cidade sem relevância de fluxo de trânsito. Quando vi a preocupação do ministro Alexandre, não tinha dúvida”, disse Vieira. No segundo turno da eleição presidencial de 2022, Moraes presidia o TSE e mandou que a PRF interrompesse policiamento em rodovias do Nordeste que poderiam atrasar a chegada de eleitores nas seções de votação.
Questionado se havia uma atuação diferenciada da PRF conforme o candidato à frente em determinada região, Vieira confirmou. “Totalmente. Eu à época fiquei particularmente apavorado. Porque vi que uma habilidade técnica minha foi utilizada para tomada de decisão ilegal”. Disse que guardou esse material para apresentar como prova. “Estava com receio de distorção da realidade e que podia sobrar para mim”, disse. No final, ele afirmou que não recebia ordens de Anderson Torres, ministro da Justiça à época, mas apenas de Marília de Alencar.
Ex-coordenador da PRF alegou ter recebido com estranheza ordens sobre eleições
O ex-coordenador de inteligência da Polícia Rodoviária Federal Adiel Pereira Alcântara, a terceira testemunha de acusação ouvida nesta segunda, afirmou que recebeu com estranheza as ordens sobre a fiscalização que ocorreria durante as eleições de 2022.
Diante da formação de um gabinete de crise, que funcionava em outubro de 2022, a testemunha relatou que, junto de outros coordenadores, recebeu ordens para focar esforços na fiscalização do transporte irregular de passageiros durante as eleições.
Além disso, o foco deveria ser em ônibus e vans que teriam como origem os estados do Goiás, de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e destino nos estados do Nordeste.
Para Alcântara, esse foco causou estranheza, tanto que teria questionado seus superiores sobre a determinação. Ele teria ainda alertado que a ordem poderia gerar questionamento.
Alcântara afirmou ainda que esteve com o ex-diretor da PRF Silvinei Vasques em apenas uma reunião, mas destacou que era um crítico da sua gestão. As críticas ocorreram devido ao fato de que Vasques teria atrelado a PRF a Bolsonaro, especialmente quando participava de motociatas utilizando motocicletas da PRF.
“Grande parte do efetivo não via com bons olhos a gestão de Vasques”, afirmou o policial. Alcântara afirmou ainda que Vasques teria tratado a PRF como uma polícia de governo e não de Estado.