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O uso de pesticidas ilegais na produção agrícola brasileira se intensificou nos últimos anos e o crime já domina uma parte do mercado na distribuição dos produtos. Um relatório do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social das Fronteiras (Idesf) aponta que 25% dos defensivos agrícolas vendidos no país são de origem ilegal. Desde 2023, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) apreendeu mais de 100 toneladas de agroquímicos contrabandeados, ou seja, um a cada quatro produtos comercializados tem origem irregular.
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O contrabando desses produtos encontra mercado no Brasil devido às extensas fronteiras com países que possuem políticas regulatórias diferentes. Uruguai, Paraguai e Bolívia têmlegislações menos criteriosas para importação de matéria-prima e produtos agroquímicos.
“O problema dos pesticidas contrabandeados é o mesmo dos eletrônicos ilegais – falta de garantia, origem duvidosa, produtos adulterados e o agricultor que compra acaba virando um receptador”, explica o engenheiro agrônomo Carlos Hugo Winckler Godinho, do Departamento de Economia Rural, órgão da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Paraná.
No Uruguai e na Bolívia apenas os produtos considerados mais perigosos requerem receita agronômica, ao contrário do Brasil, onde todas as compras exigem prescrição. Já o Paraguai domina o mercado paralelo como importador.
As cargas chegam legalmente até o país vizinho, vindas da China, Índia, Bélgica e outros países menos rigorosos na produção dos pesticidas. Segundo a PRF, a maioria das cargas apreendidas saem do Paraguai em direção aos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, maiores centros agrícolas do país.
Prejuízos em qualidade e rastreabilidade dos produtos agrícolas
Um estudo sobre o mercado ilegal de defensivos agrícolas, publicado em 2019 pelo Idesf, apontou que entre os produtos mais contrabandeados estava o benzoato de emamectina, inseticida cujo uso é direcionado para o combate de lagartas, principalmente nas lavouras de soja.
No Brasil, à época, a substância tinha uso permitido temporariamente em seis estados, na concentração máxima de 5%, até julho daquele ano. As forças de segurança do Paraguai, porém, apreenderam cargas da substância destinada ao território nacional com concentração de 36%, ou seja, 600% superior à permitida pela legislação brasileira.
Além dos problemas técnicos, o uso de pesticidas ilegais pode gerar multa e outros prejuízos. “As multas são pesadas, conforme a lei 7.802/89. Mas também há prejuízo na produtividade, porque produtos falsificados ou até mesmo mal formulados têm baixa eficácia. Também há a desvalorização do produto, porque sem rastreabilidade, perde-se muito em agregação de preços”, explica Gianni Queiroz Haddad, doutora em Ciências – Entomologia Agrícola e Fitotecnia pela Universidade de São Paulo (USP).
Como funciona a aprovação de defensivos agrícolas no Brasil
Para ser aprovado no Brasil, um defensivo agrícola passa pela análise de três órgãos. O Ministério da Saúde faz a análise de risco à saúde humana e estabelece o intervalo de segurança entre aplicações. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) estabelece quais as ameaças de impacto ambiental, analisando os problemas que podem surgir para organismos não alvos, como as abelhas. Já o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que coordena todo o processo, faz a análise agronômica e verifica a eficiência do produto, indicando composição geral e quantitativa.
Em 2024, o Brasil aplicou aproximadamente 720 mil toneladas de pesticidas nas lavouras, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), quantidade que coloca o Brasil como o maior consumidor de defensivos agrícolas do mundo. No ano passado, o país bateu recorde de liberação de novos produtos, segundo informações do Mapa.
Foram 663 aprovações, um aumento de 19% em relação a 2023, quando foram liberados 555 produtos. A maioria dos novos produtos aprovados são genéricos de outros agentes já liberados, totalizando 541 nessa modalidade. Quinze novas substâncias foram aprovadas, assim como 106 produtos de origem biológica, os chamados "bioinsumos".
Um processo comum, no uso de qualquer defensivo agrícola, é a resistência de alguns indivíduos dentro de uma praga. Por exemplo, o agricultor faz a pulverização de inseticida em uma lavoura de soja, infestada de percevejos. Grande parte dos percevejos vai morrer, mas os que tiverem um gene com mais força vão sobreviver e criar uma geração mais resistente.
No uso dos produtos ilegais, esse efeito pode ser potencializado, criando pragas multirresistentes. “Quando um agricultor utiliza um inseticida, ainda mais se este for contrabandeado e, portanto, sem registro no Mapa, ele pode estar aplicando um produto de origem e formulação duvidosa, com eficácia irregular e princípios ativos proibidos ou já superados”, aponta Giani Queiroz Haddad.
Sem garantia de análises prévias, o uso de defensivos agrícolas pode ter consequências devastadoras para a produção no campo. “A composição dele não é garantida, os riscos para a saúde humana e para o meio ambiente não são testados, não sabemos o que tem dentro de uma embalagem de um produto contrabandeado, pode não haver o ingrediente ativo que deveria ter”, afirma o engenheiro agrônomo Renato Blood, da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar).
A rota do contrabando dos defensivos agrícolas na fronteira
Pela incidência de apreensões é possível identificar as rotas preferenciais dos contrabandistas na fronteira e como se ramificam até os centros agrícolas brasileiros. Na região de Cascavel (PR), entre as BRs 277 e 163 - uma das áreas agrícolas mais prósperas do país - há uma espécie de eixo na distribuição dos agroquímicos. A primeira rota se origina em Foz do Iguaçu (PR) e segue até o litoral paranaense e a segunda atravessa o país, desde o Rio Grande do Sul até o Pará.
Entre 2018 e 2020, de acordo com dados da CropLife Brasil, os fabricantes de defensivos agrícolas registraram R$ 214,18 milhões em prejuízos, em cargas roubadas no Brasil. Em 2023 e 2024, segundo dados da PRF, foram apreendidos 101 mil quilos de agroquímicos ilegais.
No ano passado, o contrabando movimentou R$ 468 bilhões, considerando perdas econômicas e impostos sonegados. Além disso, o uso dos produtos irregulares resultou em multas de mais de R$ 2 milhões, em propriedades rurais do Mato Grosso do Sul. Abaixo, dados sobre as apreensões nos últimos dois anos, pela PRF:
2024: 16.227 quilos de defensivos agrícolas apreendidos
- RS: 5.294 kg
- SC: 1.343 kg
- PR: 2.409 kg
- MS: 5.331 kg
- MT: 1.500 kg
- TO: 500 kg
- DF: 50 kg
2023: 85.070 quilos de defensivos agrícolas apreendidos
- GO: 17.289 kg
- MG: 172 kg
- MS: 6.102 kg
- MT: 27.760 kg
- PR: 2.566 kg
- RN: 25 kg
- RO: 417 kg
- RS: 16.794 kg
- SC: 13.845 kg
- TO: 100 kg
Uma possível legislação conjunta entre os países da América do Sul seria um caminho para travar as importações ilegais dos produtos agroquímicos. “O Brasil precisa de forma urgente liderar estas discussões junto ao Mercosul. Buscar caminhos de homogeneização das legislações entre os países do bloco. Se temos os mesmos produtos sendo produzidos entre os países e compartilhamos biomas, climas e tipos de solo, não justifica que haja importações de matérias-primas diferentes”, afirma o presidente do Idesf, Luciano Stremel Barros.
Além de uma legislação com termos comuns, a instituição de laboratórios é considerada uma alternativa, aponta Barros. “Deveríamos buscar a constituição de laboratórios para homologação de entrada de matéria-prima de forma conjunta entre os países. Estes mecanismos ajudariam a preservar melhor o meio ambiente e selaria o fim do contrabando”, opina.
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