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Jonas Rabinovitch

Será que os rótulos “esquerda” e “direita” ainda fazem sentido?

Lula e Bolsonaro, pesquisa, eleição 2026
O presidente Lula (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) (Foto: Sebastião Moreira/EFE)

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“O Brasil não tem partido de direita, de esquerda, de nada, tem um bando de salafrários que se reúnem para roubar juntos.” Essa frase, dita pelo jornalista Diogo Mainardi em 2010, poderia até hoje resumir boa parte de nossa situação política. O único problema da frase é nivelar por baixo todos os políticos, inclusive aquela minoria importante que faz um trabalho sério. Ao mesmo tempo, somos bombardeados com notícias sobre a “direita” e a “esquerda”, como se esses rótulos tivessem a necessária clareza para definir bem nosso espectro político.

Nada mais falso. Na verdade, todos usam “direita” e “esquerda” de forma heurística. Essa palavra vem do grego antigo e significa encontrar respostas simplificadas, mas não 100% corretas, para perguntas complexas. O problema fica ainda mais sério quando, ao invés de esclarecer, os rótulos “direita” e “esquerda” confundem ainda mais nosso entendimento político, tornando-o ilusório.  A quem interessa isso?

Por exemplo, sabemos que Lula é de “esquerda” e Bolsonaro é de “direita”, não é assim? Teoricamente, a direita prioriza liberdade individual e iniciativa privada, enquanto a esquerda defende intervenção estatal para promover a chamada “igualdade social”. Sabemos que na prática nunca funciona assim. Talvez por obra de marqueteiros ardilosos, a “esquerda” é mostrada como promotora do amor e defensora dos pobres, enquanto a “direita” é mostrada como promotora do ódio e competição social. Enfim, a “esquerda” parece ter conseguido emplacar a falácia de que só ela defende os pobres enquanto a “direita” só defenderia os interesses dos ricos. E a direita aparentemente nunca faz nada sobre isso, talvez porque esteja muito ocupada trabalhando. É claro que, consequentemente, muitas pessoas genuinamente decentes e bem-intencionadas acabam optando pela “esquerda” porque preferem se sentir boazinhas e moralmente corretas do que más e competitivas. 

Em 1950, em plena guerra fria, o psicólogo americano Leonard W. Ferguson usou dez indicadores para medir o posicionamento político das pessoas: controle da natalidade/aborto, pena de morte, censura, comunismo, evolução ou criação da vida, lei, patriotismo, posições sobre Deus (teísmo), justiça/tratamento de criminosos e guerra. Sempre houve atração e repulsão entre pessoas por causa de suas posições políticas. Às vezes isso se manifesta na criação de partidos políticos ou no posicionamento de almas bem-intencionadas. Dizem que o caminho para o inferno está cheio de boas intenções. 

O mundo se diversificou muito desde a criação da oposição política entre direita e esquerda, a ponto desses rótulos levarem a erros.  Por vezes, esses erros são deliberadamente explorados para dar a impressão contrária do que realmente significam

Para quem não sabe, a definição “esquerda” e “direita” começou na época da Revolução Francesa em 1789. A sociedade francesa era estruturada em três grupos: o Primeiro Estado (igreja, clero), o Segundo Estado (nobreza) e o Terceiro Estado (comerciantes, burgueses, plebeus). O Terceiro Estado pagava todos os pesados impostos, mas não tinha representação política, levando finalmente à famosa Revolução Francesa e convocação de uma Assembleia Nacional, o que não acontecia há 174 anos. Foi um processo violento: cerca de 17.000 pessoas tiveram a cabeça cortada pela guilhotina.  O número total de mortes durante a Revolução Francesa, incluindo o “Reinado do Terror” e guerras civis, foi de cerca de 2 milhões de pessoas. 

O Terceiro Estado se sentava no lado esquerdo da Assembleia, enquanto a nobreza e o clero se sentavam do lado direito. Assim, a “esquerda” agiu de forma revolucionária provocando mudanças na rígida estrutura da França absolutista, enquanto a “direita conservadora” defendia o status quo da época. A classe de comerciantes e burgueses sustentava uma aristocracia política que não produzia nada. Esses empreendedores organizaram uma revolução que resultou na vitória da “esquerda” e na derrota de uma elite política inútil que vivia no luxo. Aquela situação não lembra um pouco o que acontece hoje? Só que ao contrário: hoje é a chamada “esquerda”, por definição, que se posiciona contra a “burguesia” e a iniciativa privada.

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Mas não é só isso. Historicamente falando, os 200 anos compreendidos entre a Revolução Francesa de 1789 e a queda do comunismo em 1989 mostraram o fracasso de uma “esquerda” comunista retrógrada, defensora de uma economia centralizada e "inimiga do capitalismo". Mas, assim como um vírus sofre mutações para poder sobreviver, a chamada “nova esquerda” espertamente ampliou sua agenda política incorporando elementos de conservação ambiental, LGBT+, feminismo, socialismo, racismo, imigração, paz, direitos civis, enfim, alguns elementos hoje conhecidos como “agenda identitária woke”. O que há por trás de tudo isso? Em uma palavra: poder. Em três palavras: acesso a recursos.

Quero dar três exemplos para mostrar que a polarização rígida entre os rótulos “esquerda” e “direita” não é casual, e confunde mais do que esclarece:

1) Fica difícil ter posições moderadas. Por exemplo, não há nenhuma contradição em defender ao mesmo tempo o capitalismo (o único modo de produção que comprovadamente funciona), a geração de empregos, a preservação da Amazônia e a igualdade de direitos entre homens, mulheres, gays, brancos e negros. Mas os excessos do politicamente correto e da agenda woke acabam forçando escolhas extremas.

O conceito de “racismo estrutural” rotula todos os brancos como sendo racistas. Todos os “homens CIS” são considerados potencialmente homofóbicos. CIS, de Cisgênero, é mais um rótulo inventado para discriminar pessoas que se sentem bem no sexo com o qual nasceram, cerca de 97.3 % de todos homens e mulheres.

Isso é ecologia humana: há uma estratégia racional para privilegiar grupos que se consideram marginalizados numa espécie de “vingança histórica” e há muito dinheiro em jogo. No livro Revolução Cultural Silenciosa (2023) o jornalista americano Christopher F. Rufo lembrou Herbert Marcuse, o “pai” da nova esquerda, que dizia: “O novo proletariado poderia usar a raça, em lugar da classe, para preparar o terreno para a revolução”. Na década de 60, Marcuse achava que os fins justificavam os meios, defendendo a ditadura e o racismo como arma. Hoje, Christopher Rufo conclui de forma perturbadora: “Após seu verão revolucionário (2020), Patrisse Cullors, co-fundadora do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) assinou um contrato milionário com a Warner Bros. e esbanjou 3,2 milhões de dólares em quatro residências de luxo nos EUA. As outras co-fundadoras, Alicia Garza e OpalTometti, também assinaram contratos no setor de entretenimento com renomadas agências de talentos de Hollywood. O grupo comprou secretamente uma mansão de 6 milhões de dólares no sul da Califórnia. Enquanto isso, sua organização afundou na corrupção desenfreada. Os ativistas do movimento Black Lives Matter nunca foram uma ameaça ao capitalismo – eles foram seus beneficiários”.   

2) Por falar nisso, o capitalismo seria de direita e o socialismo de esquerda, certo? Errado. O capitalismo aumentou o acesso a bens e serviços, melhorou a assistência médica e expandiu a expectativa de vida.   A natureza empresarial do capitalismo impulsiona inovação e avanços tecnológicos, levando ao crescimento econômico, aumento de renda e redução da pobreza.

A redução global da pobreza extrema, de 42% no início dos anos 1980 para menos de 10% no século XXI, é uma prova concreta do impacto do capitalismo. A Argentina, que tem um governo de “direita”, conseguiu reduzir a pobreza em 15 pontos percentuais em apenas um ano do governo Milei, enquanto 20 milhões de famílias pobres no Brasil ainda dependem de uma mesada do Estado, o Bolsa Família, para sobreviver.  Essa política não é economicamente sustentável e não ajuda a superar lacunas entre produção, consumo e bem-estar social, o que deveria ser uma prioridade em qualquer governo de “esquerda”.

Segundo a CNN Brasil, “Enquanto o peso argentino se valorizou 40% em relação ao dólar em 2024, o real sofreu uma desvalorização de 29%. Esse contraste tem relação com a austeridade fiscal praticada por lá (Argentina), em oposição aos gastos elevados e mal direcionados no Brasil”. A questão não parece ser apenas esquerda X direita, mas colocar eficiência, transparência e decência governamental na frente do populismo ideológico.

Já que falamos na Argentina, devemos lembrar ainda que foi o governo Perón, de “esquerda”, que protegeu e incentivou os racistas, antissemitas e nazistas de extrema-direita a fugirem para a Argentina após a Segunda Guerra Mundial. Aliás, para a esquerda não existem moderados na direita, todos seriam de “extrema-direita”, chegando ao absurdo de igualarem Trump ou Bolsonaro a Adolf Hitler.  

3) Mas a China comunista conseguiu reduzir a pobreza, certo? Errado.  Primeiramente, a China já não é comunista há muito tempo. A China exerce um capitalismo autoritário de Estado, apesar de ser definida oficialmente em sua Constituição como uma “ditadura democrática popular”. Na prática, a China se aproxima mais do fascismo, de “direita”: criação de uma comunidade do povo, interesses individuais subordinados aos interesses da nação, Estado totalitário, partido único, ausência de voto universal, controle da informação e de setores estratégicos da economia pelo governo.

Segundo a constituição chinesa, “a premissa da ditadura democrática popular é que o partido e o Estado representam e agem em nome do povo, mas, na preservação da ditadura do proletariado, possuem e podem usar poderes contra forças reacionárias”. Ou seja: ninguém na China pode perguntar como é que uma ditadura pode ser democrática. Por sinal, em 2024, a China tinha mais bilionários do que a Europa; todos esses 516 bilionários são do Partido Comunista, claro. Para quem acha que o comunismo pode dar certo, o Instituto de Memória Histórica da Estônia preparou um website descrevendo todos os crimes nos 47 países de "esquerda" que fracassaram ao tentar implementar o comunismo.     

Em conclusão, o mundo se diversificou muito desde a criação da oposição política entre direita e esquerda, a ponto desses rótulos levarem a erros.  Por vezes, esses erros são deliberadamente explorados para dar a impressão contrária do que realmente significam. Nesse ponto, fico com a genial síntese de Millôr Fernandes: devemos sempre desconfiar daqueles idealistas que lucram com o seu ideal.          

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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