Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Manifestações

Por que a esquerda não leva mais ninguém para as ruas

Manifestação da esquerda organizada por Guilherme Boulos, em São Paulo, no último dia 31.
Manifestação da esquerda organizada por Guilherme Boulos, em São Paulo, no último dia 31. (Foto: EFE/Issac Fontana)

Ouça este conteúdo

“Para colocarmos 10 mil pessoas nas ruas, muitas vezes a gente sua sangue”. O diagnóstico é do provável próximo presidente do PT, Edinho Silva — ex-prefeito de Araraquara (SP) e candidato preferido do presidente Lula nas eleições internas do partido, previstas para julho. 

Ao comparar a adesão popular nas últimas manifestações organizadas pela direita e a esquerda, Silva não apenas admitiu a dificuldade dos petistas em mobilizar até mesmo um contingente modesto de pessoas. Ele finalmente aceitou que o campo conservador brasileiro “tem base social, sim”. 

Edinho Silva não está sozinho nessa autocrítica. José Dirceu também tem feito apelos desesperados para a militância do Partido dos Trabalhadores. 

“É preciso despertar que a eleição está aí. Ela será em outubro do ano que vem, mas começa agora. Se nós não nos levantarmos, eles nos vencerão, como já aconteceu no passado”, disse o ex-ministro da Casa Civil no começo deste mês.

Representante de outra ala do PT, considerada menos moderada, o deputado federal Rui Falcão (SP) engrossa o coro. Para ele, a esquerda deve voltar a se manifestar para “não deixar a direita com o monopólio das ruas”.  

“A gente precisa começar a ganhar espaço, está muito parado”, afirma Falcão, cujo nome vem sendo cogitado para enfrentar a corrente majoritária do partido (da qual Edinho Silva faz parte) na disputa de julho. 

A preocupação chega nos setores mais jovens do progressismo. Manuela d'Ávila, ex-deputada federal do PCdoB e candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad em 2018, vê o esvaziamento dos protestos da esquerda como um “dado da realidade”.  

Em uma entrevista publicada na semana passada pelo jornal Folha de S. Paulo, Manuela diz que “a esquerda está isolada”. E endossa a avaliação de Edinho Silva: “É uma afirmação bastante evidente e óbvia, vinda de quem não está tentando negar a realidade, mas sim olhando para ela com atenção”.

Sociedade desorganizada

O cientista político Mário Sérgio Lepre, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), identifica nas Jornadas de Junho de 2013 um ponto crucial do processo de desmobilização da esquerda.

Ele chama a atenção para o fato de que o levante foi iniciado pelo campo progressista (com os protestos contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo), porém acabou se transformando em um movimento de toda a sociedade contra o establishment

“A grande maioria dos manifestantes era formada por pessoas comuns, não vinculadas a sindicatos ou partidos. Quando essa sociedade desorganizada começou a sair de casa, a esquerda perdeu a rua”, afirma. 

“No impeachment da Dilma foi a mesma coisa. Ali já existiam grupos de direita, como o MBL e o Vem pra Rua, que ajudaram muito na questão da organização. Mas eles não foram determinantes para aquela movimentação”, diz Lepre.

Gustavo Macedo, cientista político e professor do Insper, concorda que os eventos de junho de 2013 representaram um golpe na hegemonia progressista com relação às manifestações populares. 

“Talvez por arrogância, quem estava no poder não entendeu que aquele movimento era a ponta de um iceberg muito maior. Havia um descontentamento das bases de esquerda, que se sentiram abandonadas por um governo marcado por uma dificuldade muito grande de estabelecer um diálogo com as ruas”, afirma. 

Narrativa incompatível 

Para o professor Mário Sérgio Lepre, mais do que falta de diálogo, a esquerda brasileira carece de “congruência”. 

“As pessoas percebem um descolamento da realidade. O governo do PT, por exemplo, prega uma coisa, mas não entrega aquilo. O fato não é compatível com a narrativa”, afirma. 

Já o ex-presidente Jair Bolsonaro, ele acredita, mantém seu público ativo nas ruas justamente porque sempre seguiu a direção pra a qual apontava — inclusive durante seus quatro anos no Palácio do Planalto. “É o contrário do Lula. A direita do Bolsonaro é congruente.” 

Questionado se a esquerda perdeu seu caráter crítico, e hoje é vista como o próprio “sistema” por parte da população, Lepre afirma que sim. E vai além: segundo ele, Lula conseguiu unir a velha guarda marxista com o tipo de progressismo estimulado pelos chamados “globalistas”. 

“É um governo vinculado a uma estrutura de dominação mundial”, diz, dando como exemplo o jogo de interesses envolvidos nas questões da preservação da Amazônia. “O discurso oficial é o da preocupação com a vida dos indígenas, com o desenvolvimento local. Mas quem realmente sabe o que as ONGs internacionais querem quando enviam dinheiro para lá?” 

Enquanto isso, de acordo com ele, a direita (ou parte dela) aderiu a um sentimento mais “soberanista, nacionalista” — o que explica a eleição de figuras como Donald Trump. 

“As pessoas estão se perguntando: ‘Como o Trump está subindo tanto a tarifas? Ele quer destruir o mundo?’. Não. Ele está tentando destruir o sistema econômico mundial, que domina todas as coisas com as quais o eleitor dele não compactua.”

Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro participaram de uma manifestação em São Paulo no último domingo (6). (Foto: EFE/Isaac Fontana)

Partido digital 

Gustavo Macedo, do Insper, acredita que o PT não está à frente de um “governo de esquerda” — e sim de centro, devido à composição partidária dos ministérios e ao próprio fato de o vice-presidente, Geraldo Alckmin, ser um adversário político histórico do partido. 

“Além disso, devido ao sistema de presidencialismo de coalisão, o atual presidente cede muito ao Congresso em algumas pautas. Um Congresso de maioria conservadora.” 

Macedo, no entanto, concorda que há uma desmobilização da esquerda brasileira. “Em grande medida, porque existe uma grande dificuldade da produção de novas lideranças, que é uma característica do populismo que marca a política do país nos últimos 15 anos, pelo menos.” 

Para o cientista político, o fenômeno mais importante a ser observado é o advento do “partido digital”. “Em ambientes populistas, como o caso brasileiro, os políticos não têm necessariamente eleitores, e sim seguidores. Eles não tomam decisões orientadas pelas lideranças partidárias. Seus pronunciamentos são voltados para agradar os seguidores nas redes sociais.” 

Segundo Gustavo Macedo, a consequência desse foco nos meios virtuais é um esvaziamento do processo político, que acaba sendo trocado pelo imediatismo e pela construção de narrativas. “A direita e a extrema direita souberam mobilizar isso muito bem nos últimos dez anos. Eles se estabeleceram num espaço em que a esquerda chegou muito tardiamente.” 

Racha identitário 

Ainda com relação aos meios digitais, Macedo lembra que as redes sociais ajudaram a impulsionar uma agenda que contribuiu para a fragmentação da esquerda: a identitária, hoje também chamada de woke

De acordo com ele, o identitarismo é fruto de uma narrativa promovida principalmente pelo Partido Democrata dos EUA. Exportada para o Brasil de forma não orgânica, essa demanda encontra forte resistência entre os marxistas mais veteranos (para quem a verdadeira luta é a de classe). 

“Essa narrativa acaba empoderando algumas lideranças progressistas em detrimento de outras”, diz o professor do Insper.  “E o que nós estamos vivendo no Brasil [a desmobilização da esquerda] é um pouco do reflexo da falência dessa estrutura narrativa norte-americana.” 

Mário Sérgio Lepre, da PUCPR, também acredita que as pautas identitárias “dividem a esquerda por dentro” e ajudaram a tirar a militância da rua — porém em menor medida. “Porque, na hora de votar, todos vão, sem dúvida alguma, se direcionar ao mesmo candidato de esquerda.” 

Ativismo silencioso 

Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o cientista político José Alves Trigo traz outra camada para a discussão. Segundo ele, todos os protestos emblemáticos do passado, no Brasil e no mundo, foram liderados por jovens entre 18 e 25 anos — o que não acontece atualmente. 

“Não conheço na história da humanidade nenhuma grande manifestação política que tenha sido feita por adultos com mais de 50 anos ou idosos”, afirma. “É um novo tempo, um novo jovem, uma nova geração. Parece-me que não há mais essa preocupação.” 

Para Trigo, o “ativismo silencioso” é a regra no século XXI. “Não se trata de um fenômeno de direita ou esquerda, mas de uma mudança da sociedade”, diz o professor, destacando que a prática da “manifestação silenciosa” também acontece em outras dimensões da sociedade. 

“Hoje em dia, por exemplo, quando um time de futebol é campeão, nós não temos sequer fogo de artifício. Porque eles estão proibidos. Não é mais uma forma, digamos, moderna de se comemorar. O torcedor não vai para a rua, não coloca a bandeira no carro, não buzina. O torcedor fica se manifestando nas redes sociais.” 

Segundo o cientista político, os jovens da atualidade só são atraídos aos protestos quando estes envolvem pautas identitárias (como no caso das mobilizações anti-Trump ocorridas nos últimos dias nos EUA e em outros países). E, mesmo assim, a faixa etária predominante é a dos adultos. 

“Nossas referências nesse sentido ainda são de 40, 50, 60 anos atrás. Continuamos pensando em 2025 com uma cabeça dos anos 80. Por isso acredito que as grandes manifestações políticas se perderam no tempo”, afirma.

VEJA TAMBÉM:

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

OSZAR »