Ouça este conteúdo
Os campos de trabalhos forçados da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgiram na década de 1920, por ordem de Vladimir Lênin, e foram encerrados em 1961. Estima-se que, ao longo dessas quatro décadas, 18 milhões de pessoas foram detidas e cerca de 1,7 milhão tenham morrido.
Na Rússia, esses locais não eram conhecidos como gulags — a expressão se popularizou no Ocidente a partir da sigla que, em russo, significa, “Diretoria Central dos Campos”. Entre os soviéticos, os locais costumavam ser chamados simplesmente de campos.
Os gulags funcionavam como dezenas de ilhas que, na expressão popularizada pelo escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura Aleksandr Solzhenitsyn, formavam um vasto arquipélago, para onde eram enviados desde criminosos comuns até milhares de inocentes, sem direito a se defender em julgamento.
Enquanto estiveram ativos, forneceram mão-de-obra gratuita para dar suporte às atividades de expansão econômica soviética, especialmente a mineração. Em outras palavras, a ditadura do proletariado se apoiou em trabalho escravo para se sustentar. Veja a seguir como era viver em um gulag da URSS.
1. A prisão
Um prisioneiro reencontra um colega, que pergunta por que ele voltou à cadeia. “Por preguiça”, responde. “Meu amigo e eu contamos piadas sobre política a noite inteira. Eu fui dormir. Ele não era preguiçoso como eu e correu para a polícia me delatar primeiro.” A anedota era bastante popular na União Soviética. Mas contá-la podia levar para a cadeia — há registros da condenação a dez anos de prisão, em 1947, de um cidadão chamado Serguei Popovitch, cujo crime foi contar seis piadas consideradas antissoviéticas.
De fato, do ponto de vista dos cidadãos comuns, o gulag era uma ameaça constante, porque os crimes que podiam condenar pessoas aos trabalhos forçados eram os mais banais e aleatórios. Um grupo de militantes que escreveu uma peça de propaganda a favor das parcerias com a China, por exemplo, foi detido e levado aos gulags.
Eles escreveram a peça a mando do governo, mas um funcionário de alto escalão considerou o texto excessivamente elogioso aos chineses. Ter participado de qualquer partido político que não o bolchevique, mesmo que num passado distante, também era motivo suficiente para perder a liberdade.
2. O julgamento
“A detenção é isso”, escreveu Solzhenitsyn em seu livro “Arquipélago Gulag”, um relato dos oito anos em que ele passou preso em um campo de trabalho forçado — foi detido por criticar Josef Stalin em cartas privadas. “O brusco som noturno da campainha ou a brutal pancada na porta; a brava investida dos agentes com as botas sujas; a assustada testemunha que os segue”.
A testemunha, no caso, pode ser um vizinho ou familiar que fez a denúncia. Ou simplesmente qualquer cidadão escolhido aleatoriamente para formalizar uma acusação, geralmente julgada rapidamente e sem direito a defesa. “Adotou-se uma forma completamente nova: a repressão sem julgamento”, relata Solzhenitsyn. E assim, prossegue, a URSS inventou “o único órgão punitivo da história da humanidade que reuniu em nas mesmas mãos a investigação, a detenção, a instrução do processo, a acusação pública, o julgamento e a execução da sentença”.
As detenções noturnas, diz o escritor, eram o método mais utilizado, porque “todos os habitantes do apartamento ficam encolhidos pelo terror, desde a primeira pancada na porta”. Além disso, “nem os inquilinos do prédio, nem os transeuntes das ruas da cidade veem quantos foram levados durante a noite”.
3. O transporte
O método mais comum para levar os presos até os campos era se utilizar de trens de carga, onde os condenados eram colocados em vagões sem assentos nem janelas. Caminhões utilizados para transporte de animais também eram muito utilizados.
Era comum que as viagens demorassem até um mês, tamanho era o isolamento dos locais onde os prisioneiros eram mandados — o que facilitava o trabalho dos guardas, que não temiam as fugas porque, em geral, quem conseguia escapar morria nos arredores dos gulags. De acordo com um relatório publicado pela Anistia Internacional em 2017, esse método de transporte de detentos ainda é comum na Rússia.
As famílias costumavam encontrar enorme dificuldade em descobrir em qual dos campos seus parentes estavam. E ainda se viam perseguidas pelo resto das vidas, porque passavam a carregar a fama de ter colaborado com supostos traidores da pátria.
4. A chegada
Os poucos bens que os presos podiam carregar consigo eram tomados deles logo na chegada, enquanto grupos de quatro pessoas permaneciam amontoadas, nus, em cubículos normalmente sem piso — os pés ficavam apoiados sobre a terra molhada ou coberta por uma camada de gelo. Depois da revista, os detentos recebiam uniformes padronizados. Suas posses, especialmente roupas de qualidade, costumavam se perder nas mãos dos guardas.
5. As instalações
Muitas vezes, os quartos coletivos eram instalados dentro dos muitos monastérios abandonados em decorrência da perseguição religiosa promovida pelos soviéticos desde o início da revolução. Os banheiros ficavam em áreas externas, com um buraco no chão fazendo as vezes da privada, e os próprios detentos eram responsáveis em limpar os dejetos. As infestações de piolhos eram comuns e o atendimento médico se limitava ao mínimo necessário. Muitas pessoas morriam de tifo — caso do poeta Óssip Mandelstám, condenado a cinco anos de trabalhos forçados e que não resistiu à doença.
6. O trabalho
Nos primeiros anos, os detentos gulags foram utilizados para trabalhar em obras de infraestrutura, em especial a construção de usinas de carvão e ferrovias. Quando se aproximou a Guerra Patriótica (como ficou conhecida na Rússia a Segunda Guerra Mundial), passaram a atuar com a construção de armas e suprimentos militares nas fábricas adaptadas para esse fim. Mas a principal utilidade da rede de trabalhadores escravos estava mesmo na mineração: por volta da década de 1940, o trabalho forçado respondia por 46,5% do total da extração de níquel, 76% do cobre e 60% do ouro do país, segundo um levantamento realizado por Galina Mikhailovna Ivanova e publicado no livro Labor Camp Socialism: The Gulag in the Soviet Totalitarian System (“Socialismo nos Campos de Trabalho: o Gulag no Sistema Totalitário Soviético).
7. A alimentação
As refeições consistiam basicamente em rações de pão, batata, macarrão e um pouco de carne. Mas os gulags utilizavam o método preconizado desde a década de 1920 por Naftaly Frenkel: para estimular a produtividade dos trabalhadores, dizia ele, era necessário fornecer mais alimentos para aqueles que se mostrassem mais produtivos.
Frenkel nasceu em Israel, e em 1923, condenado por contrabando, se viu detido no campo de Solovki, o primeiro gulag. Ainda como detento, ele escreveu uma carta para a administração do local, sugerindo o método de troca de comida por produção. Frenkel acabaria sendo libertado. Tornou-se um oficial de alta patente, responsável pela gestão dos campos de trabalho forçado.
8. O fim
No dia-a-dia dos campos, as agressões físicas eram constantes e incluíam casos de estupros contra as detentas. O trabalho forçado podia se estender a 16 horas por dia, dependendo das metas que cada gulag tinha para cumprir. Para complicar ainda mais a situação, quem ficasse doente e perdesse a disposição física ficava sujeito também a receber menos alimento.
“Alguns prisioneiros estão tão deteriorados ao ponto de perder qualquer semelhança com seres humanos. Na falta de comida, comem até mesmo ratos e cães”, descreveu, em 1938, o procurador Andrei Vyshinsky, em carta a Nikolai Yezhov, chefe da NKVD, o equivalente soviético ao Ministério do Interior. Não há registro de que Yezhov tenha tomado qualquer atitude para minimizar o problema.
Era comum que fossem libertados os detentos que estivessem muito idosos ou doentes, de forma a não representar um custo para o campo — e também reduzir as taxas oficiais de mortalidade. No auge da Segunda Guerra, entre 1942 e 1943, a taxa de mortalidade nos campos de prisioneiros alcançou os 20%.
VEJA TAMBÉM: