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Há 80 anos, a assinatura da rendição incondicional das forças nazistas colocava um ponto final na Segunda Guerra Mundial. Desde então, o Dia da Vitória se tornou um símbolo da aliança contra o totalitarismo — e, para os brasileiros, de sua contribuição para o esforço aliado.
Único país da América do Sul que enviou tropas para a Europa, o Brasil terminou sua jornada no conflito mais coeso como nação: consolidou alianças internacionais, reforçou sua posição geopolítica e forjou uma nova identidade (patriótica e moderna).
Mas a trajetória dos cerca de 25 mil pracinhas deslocados para a Itália não foi um “passeio”, como muitos creem ainda hoje — devido a interpretações erradas e ao desconhecimento da sociedade da época com relação ao desempenho da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Os febianos enfrentaram o descrédito da opinião pública mesmo antes de sua partida. E, após retornarem ao país, foram descritos como turistas que viajaram à Europa para beber vinho, “fumar cigarros americanos” e voltar como heróis.
A realidade dos combatentes, no entanto, revelou-se cruel. Não bastasse viver os horrores do front, os brasileiros se depararam com falta de estrutura, equipamentos ultrapassados, treinamento deficiente e até roupas inadequadas para o rigoroso inverno europeu. Muitos dos soldados eram civis que mal haviam segurado uma arma.
A partir de cartas e diários escritos pelos expedicionários e seus parentes, pesquisadores vêm buscando, nas últimas décadas, redimensionar a experiência brasileira na guerra. São fontes que revelam sentimentos contraditórios, noites geladas e vivências radicais — além de demonstrações de fé e disciplina.
A seguir, resgatamos alguns dos aspectos do cotidiano dos febianos, extraídos dos arquivos oficiais das Forças Armadas e do Ministério das Relações Exteriores, documentos da Associação Nacional dos Veteranos da FEB, artigos acadêmicos e livros como “Nas Trilhas da 2ª Guerra Mundial” (Carmen Lúcia Rigoni), “O Brasil na II Grande Guerra" (Manoel Thomaz Castello Branco), “As Duas Faces da Glória: a FEB Vista pelos Seus Aliados e Inimigos” (William Waack) e “Entreato: o Cotidiano de um Praça Brasileiro na Segunda Guerra Mundial” (Pedro Ferrari), entre outros.
Cartas censuradas
Mais de 1,3 milhão de cartas foram enviadas e recebidas durante a guerra, além de 75 mil telegramas postados para o Brasil. No entanto, uma reclamação constante dos pracinhas e seus familiares dava conta da rigorosa vigilância do governo com suas correspondências.
O Serviço Postal da FEB colaborava com o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do regime de Getúlio Vargas) abrindo e lendo todas as comunicações, sob a justificativa de impedir o vazamento de informações estratégicas (como posições da tropa e datas de embarque).
Porém, segundos os febianos, também havia um controle implacável com relação a comentários políticos e, principalmente, críticas ao Estado Novo. São muitas as histórias sobre cartas que chegavam com “recortes feitos à tesoura” — um expediente que deixava os combatentes frustrados e as famílias, angustiadas diante da falta de notícias mais precisas.
Caminhos do soldo
Um dos assuntos mais abordados nas comunicações entre os pracinhas e seus familiares era dinheiro. Ou melhor: a logística que envolvia o repasse dos vencimentos dos combatentes para quem ficou no Brasil.
Além de revelar diferentes arranjos financeiros familiares, as cartas do período trazem instruções detalhadas sobre como sacar o salário mensal dos combatentes. Afinal, muitos dos parentes designados para essa tarefa eram pessoas simples, sem o menor conhecimento do sistema bancário — o que preocupava ainda mais quem estava tão longe de casa.
Existiam, ainda, diferenças significativas na agilidade do recebimento dos pagamentos. Famílias radicadas no Rio de Janeiro e em São Paulo tinham acesso ao dinheiro mais rapidamente, por estarem próximas ao Ministério da Guerra.
Alimento (para o corpo)
Havia uma percepção de que a comida fornecida pelas forças americanas era farta — especialmente se comparada às provisões minguadas dos quarteis no Brasil (e limitadas, de acordo com os militares, a “feijão, arroz, farinha e pedaços de carne”).
A variedade da dieta ianque também chamava a atenção dos brasileiros: sucos, leite, chocolate, ovos, carne de peru, biscoito e torrões de açúcar faziam parte da ração. Ainda assim, houve quem enfrentou uma dificuldade inicial para adaptar o paladar às novidades (“Tudo é doce”, diziam os expedicionários).
No entanto, relatos dão conta de que a abundância só começou após a chegada à Itália. Durante a viagem, muitos se queixaram da comida insuficiente, restrita a duas refeições fracas por dia.
Alimento (para a alma)
Em maio de 1944, o governo criou o Serviço de Assistência Religiosa do Exército, que enviou para a Itália 24 sacerdotes católicos e dois protestantes (um metodista e um batista). Chefiados por um tenente-coronel capelão, eles eram voluntários que recebiam o mínimo de treinamento militar e, mais tarde, poderiam ascender ao oficialato.
Embora a maior parte do atendimento espiritual fosse realizada na retaguarda, em função dos perigos do front, os capelães também se aventuraram a visitar as unidades da linha de frente. E, além de participar das celebrações conduzidas por padres e pastores, os próprios febianos improvisavam cultos próximos aos campos de batalha.
Para os expedicionários, a religiosidade foi mais do que uma estratégia de enfrentamento do medo e das incertezas da guerra: representou, como afirmaram vários deles, um alento para o “conflito quanto a matar outra pessoa”.
Teatro sem ensaio
O primeiro mês na Europa foi caracterizado pela falta de armamento e materiais de instrução. Boa parte dos soldados só tiveram contato com fuzis já no teatro de operações italiano, e mal sabiam limpá-los.
Para piorar, os pracinhas não haviam sido treinados para atuar numa geografia caracterizada pela altitude. E o resultado desse despreparo foi um número considerável de baixas provocadas por acidentes — principalmente com veículos e armas de fogo.
Nenhuma dessas omissões, contudo, ficou tão marcada no imaginário nacional do que os problemas enfrentados pelos febianos com os uniformes fornecidos pelo Exército brasileiro. Finas demais para o rigoroso inverno europeu, as fardas tiveram de ser trocadas por peças americanas, que nem sempre serviam bem nos novos donos e causaram ainda mais constrangimento aos pracinhas.

Frio, o segundo inimigo
O inverno europeu foi um dos maiores desafios enfrentados pelos militares da FEB. E não só devido a dificuldades como dormir, preparar refeições e vestir as já citadas roupas inadequadas.
As baixas temperaturas e a água gelada contribuíram para problemas de saúde, como conta um soldado que tossia sangue após “ficar enterrado na água podre e gelada”. Também há narrativas sobre brasileiros que desapareciam e mais tarde eram encontrados mortos, sepultados na neve de “quase 70 centímetros”.
Marchando e guerreando enquanto os termômetros registravam até 20 graus negativos, os pracinhas eram enfáticos ao apontar seu inimigo mais perigoso, depois dos alemães: o frio.
Tutti amici
Sempre lembrada como um aspecto positivo da passagem brasileira pela Itália, a relação com a população local foi marcada pela generosidade dos febianos. Devido à pobreza nas cidades percorridas pela FEB, era comum soldados darem comida para mulheres, idosos e crianças que se aproximavam.
A origem latina e a proximidade dos idiomas também uniram os dois lados. O mote tutti latini, tutti amici (“todos latinos, todos amigos”) foi rapidamente popularizado entre os italianos, que muitas vezes hospedavam expedicionários em suas casas. Nesse cenário, surgiram incontáveis romances rápidos e algumas dezenas de casamentos.
Porém, como é de praxe em contextos de guerra, o mercado da prostituição explodiu nas regiões do conflito. Mas não são raros os depoimentos de militares que se sentiram degradados e arrependidos após buscar, sem sucesso, satisfação em serviços sexuais pagos.
Guerra de sentimentos
Ao chegar em Nápoles, os expedicionários logo tiveram seu primeiro contato com a destruição causada pela guerra. Muitos contam que, ao se depararem com carcaças de navios aniquilados no porto, receberam a primeira dose do sentimento central e permanente de toda aquela jornada: o medo.
Em contrapartida, o importante era não desertar, “não ser covarde”. E alimentar o vazio deixado pela distância e a saudade com a esperança do retorno.
De forma geral, os depoimentos dos pracinhas apontam que a raiva contra os inimigos era pontual e circunstancial. Dentro dessa lógica, matar um oponente era um ato impessoal, restrito exclusivamente às situações de combate.
O horror
A experiência sensorial e física da guerra é descrita como o maior extremo pela qual um ser humano pode passar. Com os soldados da FEB não foi diferente — suas histórias sempre trazem à tona o risco constante e iminente de morte, mutilação e captura.
As descrições da ação no front são assustadoras. Incluem explosões de obuses, roncos de metralhadora, chuvas de estilhaços, surtos nervosos, corpos dilacerados, feridos clamando por ajuda (e oração), poças de sangue, colegas desaparecidos.
O mínimo entendimento dessa realidade, que contrasta em todos os níveis com a ideia de um “passeio”, já é suficiente para estimular o resgate e a divulgação da memória desses brasileiros.
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